Luanda – Graças à mediação de Angola, o Mundo inteiro acaba de testemunhar a libertação dos dois soldados rwandeses capturados pela República Democrática do Congo (RDC), na origem de uma nova tensão entre os dois países vizinhos.
Por João Gomes Gonçalves
Um feito que à partida parecia impossível no imediato, Angola conseguiu-o em pouco menos de duas semanas, desde o começo da sua nova missão medianeira em nome da União Africana (UA).
O mandato de mediação foi conferido pela 16ª (décima sexta) cimeira extraordinária da UA, decorrida em Malabo (Guiné Equatorial), em 27-28 de Maio deste ano.
Nos últimos tempos, a UA passou a designar alguns dos seus líderes para serem seus “Campeões” em áreas temáticas específicas para impulsionar a paz, a estabilidade, o crescimento e o desenvolvimento do continente.
O encontro de Malabo designou o Presidente angolano, João Lourenço, “Campeão para a Paz e Reconciliação Nacional” com a responsabilidade de liderar iniciativas de prevenção, gestão e resolução de conflitos em África.
Três dias depois, o seu homólogo da RDC, Antoine Félix Tshisékédi Tshilombo, fez uma visita “relâmpago” a Angola, a 31 de Maio, para consultas sobre a tensa situação que acabava de nascer na fronteira congolesa com o Rwanda.
Na mesma ocasião, o Chefe de Estado angolano conversou por videoconferência com o Presidente do Rwanda, Paul Kagame.
Aos seus dois interlocutores, João Lourenço formulou várias propostas, visando uma resolução pacífica do diferendo, a começar pela convocação de uma cimeira tripartida, em Luanda, sobre a mesma questão.
A reunião deverá “cuidar de todos os aspectos que possam ajudar a promover o desanuviamento da tensão actualmente reinante na fronteira entre os dois países e contribuir, assim, para o reforço da paz na sub-região”, diz um comunicado oficial.
Na primeira reacção às propostas de João Lourenço, o seu homólogo da RDC aceitou prontamente libertar os dois soldados rwandeses, enquanto Kagamé também se comprometeu a soltar um cidadão congolês detido em Kigali.
Os dois militares rwandeses, sob cativeiro desde 28 de Maio último, quando foram capturados na localidade fronteiriça do Rutshuru, viriam finalmente a ser postos em liberdade, a 08 de Junho corrente.
No mesmo dia, escalaram Luanda, com destino a Kigali, depois de deixarem Kinshasa.
Em reconhecimento do sucesso dessa diligência, a comunidade internacional, através das Nações Unidas, expressou prontamente o seu apoio aos esforços de Angola e saudou a nomeação de João Lourenço, pela UA, para ajudar a “aliviar as tensões entre a RDC e o Rwanda”.
“A ONU apoia totalmente esses esforços políticos”, sublinha um comunicado assinado por Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da organização mundial, António Gueterres.
Início do novo ciclo de tensão
A nova crise entre os dois países da África Central começou a 27 de Maio passado, quando a RDC acusou abertamente o Rwanda de apoiar o grupo rebelde M23, que ressurgiu na província do Kivu-Norte, no leste congolês.
Em seguida, a RDC proibiu a companhia aérea rwandesa “Rwand’Air” de operar no seu território, levando esta última a anular todos os seus voos com destino a Kinshasa, Goma e Lubumbashi.
O embaixador do Rwanda, em Kinshasa, foi notificado sobre a total desaprovação do Governo congolês ao comportamento de Kigali.
Mas Kigali considerou os combates entre as Forças Armadas congolesas (FARDC) e o M23 “um conflito intra-congolês”, enquanto Kinshasa insistia que este último, um movimento armado composto maioritariamente por tutsis (etnia do Presidente Kagame), é apoiado pelo Rwanda.
Esse clima tenso suscitou uma inquietação universal, no continente e no Mundo, com o actual presidente da UA e chefe de Estado do Senegal, Macky Sall, a manifestar-se “gravemente preocupado”.
Macky Sall instou Kinshasa e Kigali à calma e ao diálogo para resolver pacificamente a crise, “com o apoio dos mecanismos regionais e da UA”.
Por seu turno, o secretário-geral da ONU, António Guterres, reafirmou o seu “forte compromisso” com a soberania, independência, unidade e integridade territorial da RDC e condenou veementemente as incursões militares.
Convidou todos os grupos armados para que cessem imediatamente a violência e participem incondicionalmente no Programa de Desarmamento, Desmobilização, Recuperação e Estabilização da Comunidade (P-DDRCS).
Os grupos armados estrangeiros foram chamados a “desarmar imediatamente” e retornar aos seus países de origem.
Causas das sucessivas crises entre Kinshasa e Kigali
Entre a RDC e o Rwanda, os conflitos derivam de vários factores de animosidades históricas, de ódio sedimentado e de diversas concorrências de rendimento.
No período colonial, vários camponeses rwandeses foram instalados nas colinas de Masisi (RDC) pelos colonos alemães e belgas, sendo 25 mil entre 1933 e 1945, e 60 mil entre 1949 e 1955.
A administração colonial chegou a calcular em 170 mil o número de cidadãos rwandeses instalados no Congo, na mesma altura em que também se instalou no país a chamada comunidade ‟banyamulenge”.
Depois da independência do Congo, em Junho de 1960, toda a crise política no Rwanda e no Burundi provocava uma nova vaga de refugiados e uma linguagem agressiva de etnicidade da parte dos autóctones encontrados.
Por causa disso e depois de tomar o poder, em Novembro de 1965, o Presidente Mobutu Sese Seko propôs a criação da Comunidade Económica dos Países dos Grandes Lagos (CEPGL), uma espécie de integração política, económica e social que agrupava os três países, para facilitar a livre circulação de pessoas e bens.
Infelizmente, tal comunidade desapareceu com a morte dos Presidentes dos três países, no início da década de 2000.
O desaparecimento dos regimes de Mobutu (Zaíre), Jean-Baptiste Bagaza (Burundi) e Juvenal Habyariama (Rwanda) enfraqueceu os equilíbrios de poder que foram sendo construídos ao longo dos anos.
A dinâmica dos conflitos na região inscreve-se também na lógica da instrumentalização das etnias e na vitimização propalada nos discursos políticos de alguns líderes da região dos Grandes Lagos.
Por exemplo, o genocídio contra os tutsis rwandeses, em 1994, precipitou a queda de Mobutu protagonizada por Laurent Desiré Kabila, apoiado pelos exércitos burundês, rwandês e ugandês, sob o pretexto de que o antigo marechal teria apoiado e dado guarida aos hutus genocidários.
Já no poder, Laurent Kabila constatou que o país estava política e militarmente controlado pelo Rwanda e pelo Uganda, depois de ele próprio nomear o general tutsi James Kabarebe chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Congolesas. Posteriormente, Kabarebe viria a ser ministro da Defesa do Rwanda.
Em Julho de 1998, a animosidade entre Kabila e os seus anteriores aliados aumentou, levando à tentativa de golpe de Estado contra o então Presidente congolês, que só não caiu graças às intervenções dos exércitos angolano, namibiano e zimbabweano, no quadro da SADC.
Foi nessa altura que surgiu um movimento rebelde maioritariamente tutsi, chamado RCD-Goma, alimentado pelo Rwanda, e liderado por Ernest Wamba Di Wamba, depois por Arthur Zaidi Ngoma e, mais tarde, por um tutsi congolês chamado Azarias Ruberwa.
Na mesma altura, Jean-Pierre Bemba Gombo lançava o MLC, com o apoio do Uganda.
Com o assassinato de Kabila, a 16 de Fevereiro de 2001, o seu filho Joseph Kabila Kabange assume a direcção do país e dirige as negociações inter- congolesas, em Sun City, na África do Sul, que culminaram com a assinatura do acordo de paz de 19 de Abril de 2002.
Aprovou-se, então, uma nova Constituição e um governo de transição que só viria a tomar posse apenas em 2004.
Em plena vigência do governo de transição, surge, em 2004, um movimento político-militar com o nome de Conselho Nacional de Defesa do Povo (CNDP) liderado por Laurent Nkundabatware, um general tutsi do RCD-Goma, que desertou das Forças Armadas Congolesas, para supostamente defender a sua etnia que estava a ser “massacrada” pelo Exército governamental.
É este movimento, agora liderado pelo general Bosco Ntanganda, que vai, em 23 de Março de 2009, integrar as Forças Armadas Congolesas (FARDC), depois da fuga para o Rwanda.
O mesmo movimento ressurgiu, em Abril de 2012, já com o nome de M23, numa altura em que o Tribunal Internacional de Haia reclamava do Governo congolês a entrega do general Bosco Ntanganda, pelos crimes cometidos na província do Ituri (norte), durante a guerra civil de 1998 a 2002.
Depois da sua expulsão da província do Kivu-Norte por uma força de intervenção rápida criada, em 2013, pelo Conselho de Segurança da ONU, o M23 refugiou-se no Uganda.
Desde então, todas as tentativas para a sua reintegração nas Forças Armadas foram vãs, assim como vários outros grupos armados financiados por governos estrangeiros continuaram a operar no território congolês.