Luanda - Há sensivelmente um ano, desde que eclodiu nova guerra civil no Sudão, em Abril de 2023, que as organizações humanitárias continuam a chamar à atenção para as atrocidades cometidas neste conflito armado que já provocou a crise “humanitária mais grave” da história de batalhas africanas.
Por Catarina da Silva, jornalista da ANGOP
Diante de um cenário de aparente desinteresse da comunidade internacional para a resolução do conflito, questiona-se como ficará o país no pós-conflito entre o Exército e a Frente Revolucionária do Sudão, particularmente o Movimento Popular de Libertação do Sudão-Norte (SPLM-N)?
Ao que parece, apesar do “grito de socorro”, o conflito sudanês ainda continua longe do seu final, a julgar pelo alerta de organizações não-governamentais (ONGs) que acreditam que “o Sudão foi abandonado à sua própria sorte”.
A guerra no Sudão, iniciada no Ramadão de 2023, opõe as facções rivais do governo militar deste país, as Forças Armadas sudanesas, sob o comando de Abdel Fattah al-Burhan, e as Forças paramilitares de Apoio Rápido, sob liderança de Janjaweed Hemedti.
Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), entre os milhões de sudaneses que tiveram de se deslocar, 70% tentaram sobreviver em locais onde há risco de fome, e desde o início da nova guerra civil no país estima-se que 16 mil pessoas tenham morrido.
Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) revelam que 8,6 milhões de pessoas foram deslocadas à força no Sudão no último ano e que o conflito fez com que mais de 6,7 milhões de sudaneses deixassem as suas casas e mais de 1,8 milhão cruzassem as fronteiras do país para territórios vizinhos como o Tchad e a República Centro-Africana, países que se vêem diante de um fluxo inédito de refugiados, enquanto as suas populações já enfrentam, historicamente, instabilidades políticas, sociais e económicas.
Apesar dos apelos recentes do Conselho de Segurança da ONU por um cessar-fogo temporário, todas as entidades de ajuda que acompanham a crise no país dizem que a situação não apresenta sinais de melhoria.
A guerra civil no Sudão tem levantado diversos questionamentos. Alguns membros da comunidade internacional querem saber o porquê de o mundo ignorá-la ou por que razão não se faz mais para se pôr fim ao conflito.
Várias organizações de direitos humanos estão preocupadas com o nível de violência atingida durante o conflito e lamentam o facto de pouco ou nada puderem fazer para acudirem a população sofrida.
O especialista independente em questões de conflitos africanos Roman Deckert disse, em entrevista à DW, que “assim como para tantas outras coisas na vida, a resposta é uma combinação de factores”.
Para outros especialistas, o cenário vivido no Sudão é “humanamente inadmissível” e revela um profundo descaso da comunidade internacional, activamente atenta às guerras entre o Hamas e Israel e a Ucrânia e a Rússia, “mas não dá a mesma atenção” ao Sudão.
Aliada à desnutrição aguda, provocada pela fome extrema, as mulheres e meninas sudanesas ainda enfrentam o problema de violações sexuais, como se já não bastasse as consequências terríveis provocadas pela guerra. Uma situação que preocupa as organizações de direitos humanos.
Segundo o ACNUR), cerca de 40% da população também enfrenta grave insegurança alimentar e centenas de milhares de crianças sofrem de desnutrição aguda.
Algumas ONG, chamam à atenção para as condições terríveis nos campos de refugiados, como a falta de água potável, alimentos e outros bens essenciais.
Um relatório recente do Índice de Classificação Integrada das Nações Unidas confirma que a fome aguda ameaça mais de metade da população do Sudão, a meio a uma situação que afecta também a actividade agrícola, na qual quase 65 por cento da população do país se engaja.
Quase 14 milhões de pessoas enfrentavam fome aguda antes do início do conflito, em Abril de 2023, mas as taxas são agora estimadas em 26 milhões de sudaneses.
Isto significa que pelo menos um em cada cinco indivíduos ou famílias sofre de escassez alimentar extrema e enfrenta fome e miséria, resultando em níveis extremamente críticos de desnutrição aguda e morte.
A conselheiro especial do secretário-geral das Nações Unidas para a prevenção de genocídios, Alice Nderitu, alerta, numa declaração ao Conselho de Segurança da ONU, que a “violência pode já estar a atingir a escala do genocídio” e denuncia que "os civis estão a ser atacados e mortos por causa da cor da pele, por causa da sua etnia".
Já a organização Médicos Sem Fronteiras adverte que se assiste no Sudão "a um banho de sangue diante dos nossos olhos" e que as organizações de ajuda humanitária quase nada conseguem fazer devido à violência.
Antes do início do conflito, o Sudão já estava a passar por uma grave crise humanitária devido à instabilidade política de longa data e às pressões económicas no país, sendo que, com a nova guerra civil, o país vê a cada dia mais distante o sonho de uma nação próspera.
A guerra veio agravar as condições de vida, deixando mais de metade da população do Sudão em situação de carência.
Todos os dias, milhares de sudaneses tentam deixar Darfur Ocidental com destino ao Tchad para escapar à guerra e violência no país. O Tchad, segundo fontes de ONGs, já tinha acolhido 400 mil refugiados sudaneses antes do início do conflito.
União Africana e o conflito
Diante do cenário devastador da situação humanitária no Sudão, a União Africana (UA) mantém o apelo para que se continue a recorrer à diplomacia para a resolução do conflito e exige intervenções urgentes de todos os parceiros e Estados-membros para que forneçam apoio humanitário ao povo sudanês.
O Conselho de Paz e Segurança (CPS) da UA, numa reunião em Abril deste ano, data em que a guerra completou um ano, declarou que "não existe uma solução militar viável para a crise actual e só um diálogo inclusivo, liderado e controlado pelos sudaneses, conduziria a uma solução sustentável”.
Na visão da Human Rights Watch (HRW), a União Africana deve continuar a trabalhar com a ONU para enviar "uma missão de protecção civil" ao Sudão e que devem ser investigados os crimes de guerra resultantes do conflito.
"A resposta da União Africana não tem correspondido à escala dos acontecimentos que se desenrolam no Sudão, apesar de ter todas as ferramentas à sua disposição para agir no sentido de proteger os civis", sublinha a ONG em comunicado.
A organização de defesa dos direitos humanos apelou ao Conselho de Paz e Segurança da UA para reunir e discutir a situação no Sudão, para que dê "passos concretos" para o envio de uma missão apoiada e parcialmente financiada pela ONU.
Essa missão, segundo a HRW, deveria ter como mandato não só proteger os civis, mas também monitorizar as violações dos direitos humanos e do direito humanitário internacional (incluindo a obstrução à ajuda humanitária), bem como facilitar o regresso das pessoas deslocadas pelo conflito.
A guerra já matou pelo menos 30 mil pessoas, de acordo com a União Médica Sudanesa, e deslocou mais de 10 milhões de pessoas interna e externamente, causando a pior vaga de deslocações no mundo actual.
A epidemia de cólera, declarada a 17 de Agosto deste ano pelo ministro da Saúde sudanês, Haitham Ibrahim, provocada por chuvas torrenciais, vai, certamente, elevar o número de vítimas mortais e, concomitantemente, agravar, ainda mais, o luto no seio de uma população de quase 50 milhões de habitantes. CS/JM/ADR