Luanda – As autarquias locais apresentam-se, hoje, como uma nova proposta de governação em Angola, assente num Governo descentralizado, um tema que domina o debate político após as eleições/2022.
Por António Tavares, jornalista da ANGOP
A sua institucionalização é dos assuntos mais comentados e discutidos nos últimos anos nos meios políticos, académicos e da sociedade civil, tendo tomado outros contornos após pronunciamento do Presidente da República, João Lourenço, no seu último discurso sobre o Estado da Nação, no qual voltou a manifestar o compromisso do Executivo na materialização das autarquias locais.
Trata-se da maior reforma administrativa do país desde 1975, prevista no artigo 213.º da Constituição, segundo o qual a organização democrática do Estado estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa, que compreende a existência de formas organizativas do poder local, dentre elas as autarquias locais.
A descentralização implica a acumulação e partilha de poderes do Governo Central com o Governo local, ou seja, no plano jurídico, diz-se que é o sistema em que a função administrativa está confiada não apenas ao Estado, mas também a outras pessoas colectivas territoriais, designadamente as autarquias.
No plano político-administrativo, há descentralização quando os órgãos das autarquias são livremente eleitos pelas respectivas populações, sendo independentes quanto às suas atribuições e competências, apesar de sujeitos a formas atenuadas de tutela administrativa, em regra restritas ao controlo da legalidade.
Porém, em termos gerais, pode dizer-se que o processo implica a limitação do Governo Central e o aparecimento de entes políticos locais, legitimados pelas eleições autárquicas, bem como, consequentemente, a melhoria da eficiência, governação, equidade e redução da pobreza.
A descentralização do poder contribui para o desenvolvimento de qualquer país, se criadas as condições necessárias para a sua efectiva implementação, sendo esse o principal desafio do actual Executivo.
Desafios
Realidades parecidas com as de Angola apontam que muitos são os desafios a enfrentar para que haja um processo de implementação das autarquias, eficiente e capaz de apresentar resultados satisfatórios que possam contribuir para o desenvolvimento local e global do país.
Os vários desafios que o país precisa de enfrentar para o sucesso das autarquias passam pelos aspectos geográficos, institucionais e pelo seu nível de desenvolvimento.
Outros aspectos a ter-se em conta para a sua implementação com êxito têm a ver com o grau de urbanização, tipo de infra-estruturas técnicas e administrativas existentes, a base económica de cada município, densidade populacional, a disponibilidade de estruturas jurídico-administrativas, vias de acesso e de comunicação, para se constituírem autarquias que sirvam as populações, já que a vida deve fazer-se nos respectivos municípios.
A Constituição da República consagra um modelo de Governo da autarquia assente em três instituições, sendo uma assembleia dotada de poderes deliberativos, um órgão executivo colegial e um presidente da autarquia.
Vantagens e desvantagens da implementação das autarquias
Este sistema será precursor de um conjunto de vantagens e desvantagens, tanto para a população quanto para o Governo Central.
Algumas das vantagens podem ser, nomeadamente, a desburocratização da gestão pública e dos serviços públicos, maior proximidade entre os cidadãos e o Executivo, mais autonomia entre os municípios e maior participação da população na tomada de decisões.
Inscreve-se, também, um maior controlo da arrecadação de receitas do município, eficiência na resolução de problemas urgentes nos municípios, melhoria dos acessos aos serviços de saúde, educação, entre outros.
Relativamente às desvantagens, basicamente se centram na possibilidade de descoordenação do exercício das funções autárquicas e no mau uso dos poderes limitados à autarquia por parte de pessoas (os autarcas) nem sempre bem preparadas para os exercer.
Implementação gradual e selecção dos municípios
A instituição das autarquias tem como base o princípio da implementação gradual, segundo o artigo 242.º da Constituição, princípio esse que, até então, se apresenta como a maior fonte de debate relativamente à abrangência dessa temática.
Alguns intervenientes centram os seus discursos no facto de que o regime das autarquias deve ser implementado de forma integral para todos os municípios ao mesmo tempo, de forma a evitar-se a exclusão entre esses.
De acordo com a proposta de Lei sobre a Institucionalização das Autarquias Locais, a sua implementação ocorrerá de forma faseada, primeiro com apenas 55 municípios, dos 164 existentes.
O Executivo garante que a implementação de forma integral não excederá o limite de 15 anos, estando prevista a implementação de autarquias em todos os outros municípios, em cada processo de eleições, ou seja, de cinco em cinco anos.
Os últimos municípios a serem incluídos nos sistemas de autarquias são aqueles que possuem segmentos da economia local, assentes na pecuária e na agricultura.
O Executivo aponta razões sólidas para a implementação gradual das autarquias em apenas alguns municípios das províncias de Angola.
Conforme o projecto de lei, há uma série de critérios para a selecção dos primeiros municípios, partindo do princípio de que esses precisam de ser autónomos e conseguir caminhar por si só.
De acordo com os critérios, são seleccionados os municípios que apresentam desenvolvimento sócio-económico considerável dentro da respectiva província, bem como aqueles que, sendo rurais, disponham de um mínimo de 500 mil habitantes e capacidade de arrecadação de receitas de pelo menos 15 por cento, face à arrecadação total do município.
Inclui os municípios com menos de 50 mil habitantes, com segmentos da economia local especializada e uma capacidade de arrecadação de receitas de cinco por cento face às receitas totais, tal como as circunscrições com forte potencial agrícola e capacidade de desenvolver a pecuária e de se auto-sustentar.
A proposta de lei vai mais ao longe, abarcando os municípios com fraca arrecadação de receitas e com 250 mil habitantes, bem como aqueles com fortes expressões culturais, independentemente da sua capacidade de arrecadação de receitas e da sua população.
No entanto, a proposta do gradualismo por parte do Executivo assenta numa estratégia de precaução, pois nem todos os municípios possuem infra-estruturas necessárias para se auto-sustentar e arrecadar receitas.
Transferência de competências
O processo da implementação das autarquias passa pelo reforço da descentralização do poder administrativo, bem como pela transferência de competências, recursos humanos e financeiros para os municípios.
No pacote que regula o processo de institucionalização das autarquias, existe a proposta de Lei da Transferência de Atribuições e Competências do Estado para as Autarquias Locais, que prevê a transferência progressiva das atribuições dos poderes da administração central para as autarquias e inclui a transferência dos recursos fixados anualmente pelo Orçamento Geral do Estado.
Para além da transferência das competências da administração para as autarquias, o sistema central e as diferentes autarquias podem ainda estabelecer parcerias, sendo que as tarefas que não forem atribuídas às autarquias são de inteira responsabilidade do Estado.
As competências a serem transferidas do Estado para as autarquias abrangem diversos domínios como saúde, educação, energia, água, lazer, habitação, acção social, desportos, protecção civil, património, cultura, ciência, promoção do desenvolvimento, entre outros.
As autarquias serão organizadas pelos seus órgãos representativos, que compreendem a Assembleia Municipal, a Câmara Municipal e o presidente da Câmara Municipal, que serão eleitos de cinco em cinco anos.
PIIM concorre para implementação das autarquias
O Estado tem alicerçado as bases para a implementação das autarquias, através de um Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM), que visa identificar as principais necessidades dos municípios, de forma a solucionar os problemas prioritários destas novas estruturas.
Há todo um trabalho de base a ser feito antes da realização das eleições autárquicas, e uma das premissas que integram as acções do PIIM, lançado em 2019, na província do Moxico, tem a ver com a construção de infra-estruturas administrativas autárquicas, para albergar os seus serviços.
No quadro do plano, estão a ser executados mais de dois mil projectos, como a construção e reabilitação de estradas, escolas, hospitais, redes de distribuição de água e de energia eléctrica, complexos residenciais, entre outros, que garantirão a disponibilidade de serviços básicos aos cidadãos e maior desenvolvimento das comunidades.
Até ao final de 2022, foram inaugurados mais de 856 projectos e mais 735 aguardavam pela inauguração.
Assembleias autárquicas
O Executivo compreende que as carências em infra-estruturas para as futuras autarquias devem ser resolvidas.
Por isso, sabendo que uma das principais dificuldades vividas por vários municípios é a colocação de quadros no seu território, sobretudo nas localidades mais recônditas com recursos do PIIM, está em curso a construção de complexos residenciais em 36 municípios, bem como de 35 assembleias para as autarquias.
ENAPP preparada para a formação de quadros
O modelo de gestão das autarquias obriga a capacitação multidisciplinar dos gestores, técnicos e futuros eleitos autárquicos, desafio para o qual a Escola Nacional de Administração de Políticas Públicas diz estar preparada (ENAPP).
Segundo o administrador da ENAPP para a Área de Formação, Édmio Fernando, a instituição está preparada para capacitar os quadros, de modo a tornar as futuras regiões autárquicas eficientes na prestação dos serviços públicos.
Em entrevista à ANGOP, informou que o ENAPP tem um conjunto de acções formativas destinadas aos órgãos da administração pública local e central, sendo algumas obrigatórias e outras opcionais que se adequam às autarquias.
Frisou que, em sede do processo de preparação para a implementação das autarquias, várias acções já foram feitas, visto que há uma dimensão do capital humano e não se consegue chegar à excelência sem capacitar o homem.
Nesta perspectiva, de acordo com o administrador, a ENAPP tem um rol de cursos para este segmento e um departamento voltado para a formação da administração autárquica.
Fez saber, igualmente, que as formações estão relacionadas com as finanças locais, gestão municipal, planeamento básico, orçamento participativo e procedimentos de contratação pública, já voltadas para as autarquias, independentemente das etapas que esse processo venha a ter.
Falou ainda da formação em matéria de gestão de unidades urbanas, de mercados e feiras, do tráfego e mobilidade urbana, entre outras áreas que possam dar respostas técnicas e rápidas à população.
O responsável afirmou que a instituição está preparada para responder às 18 províncias, uma vez que criou centros regionais e locais, apesar da necessidade de mais recursos humanos, contando, também, com o envolvimento de mais actores.
Por isso, disse, no processo de transferência de competências, determinados ministérios, dada a complexidade da matéria, têm criado ciclos de formação.
Por exemplo, a ENAPP, em parceria com o Ministério das Finanças, criou a Academia da Contratação Pública, para capacitar os técnicos nessa área (contratação pública).
“Este é o papel que a ENAPP deve assumir, para que possa contribuir para a implementação das autarquias