Washington - A cientista política luso-americana Daniela Melo considera que a incerteza no Congresso norte-americano, paralisado após a destituição do líder da câmara baixa Kevin McCarthy pela maioria republicana, "é terrível" para a Ucrânia e afecta a relação com os aliados.
"Esta incerteza é terrível do ponto de vista da Ucrânia. Tem um impacto directo na confiança dos nossos aliados sobre a nossa coerência na política externa e a nossa capacidade de a manter", afirmou à agência Lusa.
A destituição de Kevin McCarthy seguiu-se a uma negociação conturbada para aprovar um orçamento provisório que mantivesse o governo a funcionar, evitando a ameaça iminente de uma paralisação federal.
No entanto, a ajuda financeira à Ucrânia ficou de fora do pacote aprovado no Congresso, sinalizando uma situação cada vez mais difícil para a administração de Joe Biden, que prometeu apoio incondicional à resistência ucraniana perante a invasão russa.
"O bloqueio à ajuda à Ucrânia é um sintoma de uma doença mais grave no seio do partido republicano", indicou Daniela Melo. "As divisões aparentemente insuperáveis entre os conservadores mais centristas e as posições da ala radical, no que diz respeito à Ucrânia e ao orçamento em geral".
Esta fractura, apesar de tudo, não significa que a maioria dos republicanos tenham passado a uma posição anti-Ucrânia, salienta o politólogo Thomas Holyoke, da Universidade Estadual da Califórnia em Fresno.
"Há definitivamente uma porção do Partido Republicano que não quer dar mais ajuda financeira à Ucrânia", reconhece, "quer seja devido a austeridade fiscal ou porque desenvolveram uma afinidade por Vladimir Putin".
Mas Holyoke considera que se trata de uma pequena fracção do partido, tanto na câmara baixa como na câmara alta, o Senado. Isso pode significar abertura para que o apoio continue.
"Se uma maioria dos republicanos ainda são pró-Ucrânia, como creio, e os democratas encontrarem uma forma de se unirem em apoio a um pacote, talvez haja alguma coisa que possa ser conseguida", salientou.
"No Senado, Mitch McConnell é um forte apoiante da Ucrânia. Não conseguiu salvar o pacote de ajuda na resolução orçamental, mas ainda está a tentar encontrar mais dinheiro para a Ucrânia".
O problema é que estes solavancos minam a anteriormente elogiada união do Ocidente em torno do país liderado por Zelensky.
"No contexto mais alargado, isto mostra que a Ucrânia não pode contar com o apoio dos Estados Unidos", frisou Holyoke. "Se correr bem vão recebê-lo, mas não podem dá-lo como certo".
Daniela Melo também enquadra o bloqueio de uma forma mais abrangente. "Esta situação tem repercussões que vão muito além da esfera doméstica, com implicações sérias para o balanço de poder internacional", considerou. "Temos aqui um exemplo de como as lutas políticas internas no seio de uma potência têm graves e imediatas consequências na arena internacional".
Vista de fora, a instabilidade "desgasta a cooperação com os aliados europeus na questão ucraniana" e dá "uma aparente vitória a Putin", mesmo que seja no campo psicológico.
Por outro lado, indicou a analista, a instabilidade também reforça a posição de governos europeus mais próximos de Putin que agora se manifestam contra o reforço europeu e americano aos ucranianos. São os casos da Eslováquia e Hungria.
"Este aparente esfriar da posição ocidental quanto à Ucrânia pode também afectar a opinião pública dos dois lados do Atlântico", continuou. "O que vemos é Biden e (Josep) Borrell a fazerem o possível para conter um potencial efeito de arrasto que eventualmente os obrigue a mudar de direcção na política externa".
Em reacção ao bloqueio da ajuda financeira pelos republicanos, o presidente Joe Biden urgiu ao Congresso que "pare com os jogos" e reafirmou o seu compromisso, dizendo que não pode, sob qualquer circunstância, "permitir que o apoio da América à Ucrânia seja interrompido".
O orçamento provisório que evitou a paralisação mas deixou cair o pacote de ajuda ucraniana só estará em vigor até meados de Novembro, altura em que haverá nova ameaça de 'shutdown'.
É uma situação caótica e atrapalhada, considerou Daniela Melo.
"Tanto do lado europeu como do lado americano precisam de uma estratégia mais estável, orçamentos de longo prazo", referiu. "Isto torna a questão ucraniana muito mais susceptível aos ventos políticos, tanto de um lado quanto do outro. Isso em si é insustentável".