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O novo ordenamento arquitectónico e territorial produzido pela Independência

Cidade de Luanda
Cidade de Luanda
Pedro Parente

Luanda - Após o 25 de Abril, entre os acordos de Alvor (Janeiro de 1975) e a Declaração de Independência (em Novembro do mesmo ano), a população dos ‘musseques’ assume um papel protagonista na cidade, tornado teatro de desencontros abertos entre as facções partidárias, afirma a arquitecta angolana Maria João Teles Grilo.

Por: Maria João Teles Grilo

A realidade e a força, sempre oficialmente escondidas, tornaram-se decisivas para o novo ordenamento produzido pela Independência. 

As condições materiais da população segregada impõem-se como tema político-central. Cria-se, assim, como primeira resposta o Serviço Nacional para a Habitação (GHA - Gabinete de Habitação de Angola). 

Sob pressão de revindicações populares, a administração portuguesa projecta uma nova área de ocupação residencial destinada aos grupos excluídos das estruturas urbanas formais. A então denominada área do Golfe, prevista no plano de 1973 como zona de expansão da cidade, tem agora um novo destino social alterado pelo primeiro Governo do MPLA. 

A política urbana defendida no 1.º Congresso de 1976 sublinha a rejeição dos planos de urbanização elaborados antes da Independência e confia a solução do dualismo e da segregação residencial ao desenvolvimento do sector das construções, embora sem avançar qualquer medida específica que visasse alterar as condições de habitabilidade da maioria da população. 

O plano de 1979 e a ruptura na indústria 

Em 1979, foi confiada à Direcção Nacional de Planificação Física, instituída no âmbito do Ministério da Construção e da Habitação, a elaboração de um documento político, geral, para o ordenamento territorial do país (hipóteses de urbanização de Angola a longo prazo – 1979), que edita o esquema preliminar do plano-director da cidade de Luanda.

Na apresentação das cinco hipóteses de ordenamento, o Esquema Preliminar toma em consideração várias alternativas de expansão da cidade, que têm em comum uma mesma estrutura paralela à costa, limitada exteriormente por uma ligação viária, interurbana, entre o Norte e o Sul, ao longo da qual se prevê a localização de áreas produtivas e do novo aeroporto.

Na alternativa preferida pelos compiladores do mesmo, as zonas de expansão estão compreendidas entre o aglomerado existente e o novo sistema infra-estrutural e funcional constituído (como no plano de 1973) por uma ligação viária e pelas funções a ela conectadas.

A ligação entre as estruturas existentes e as novas zonas de expansão é confiada à rede viária secundária, polarizada em torno de um único nó constituído pela actual Praça 1.º de Maio, deixando em aberto o tipo de ocupação a dar às malhas definidas na nova estrutura.

A aplicação deste programa pressupunha a ampla utilização de unidades de pré-fabricação e a criação de unidades produtivas afins. A produção local, com a ajuda da cooperação cubana, ainda realizou algumas centenas de alojamentos segundo uma tipologia única de blocos plurifamiliares localizados nas áreas urbanizadas já consolidadas. Esse programa de habitação foi interrompido por dificuldades existentes no ciclo produtivo adoptado.

O mesmo exigia uma grande agilidade no sector executivo especializado, um constante fluxo de produtos de outros sectores industriais e uma grande capacidade organizativa, condições que então o país não reunia.  

A crise das indústrias nacionais, que paralisou quase totalmente os diversos sectores produtivos, deu lugar a duas consequências imediatas: o desaparecimento das unidades produtivas de pequena dimensão e a difusão e generalização da autoconstrução.

A primeira contribuiu, decisivamente, para a diminuição da produção de elementos de manutenção do património urbano e infra-estrutural, acelerando a sua degradação. A segunda produziu a massiva e anárquica expansão de aglomerados precários gerados pelos ciclos migratórios das populações refugiadas da guerra, que não encontraram, chegadas à capital, qualquer previsão ou meio de controlo que orientasse a sua integração. 

Em 1991, foi lançado um concurso internacional para um novo plano-director. A Profabril, em associação com o atelier do arquitecto Troufa Real, ganhou o concurso para a sua elaboração, mas anulado posteriormente pelo Banco Mundial e posto de novo a concurso. 

Plano da cidade satélite de 1997 

Em 1997, a Odebrecht, construtora brasileira, desenvolveu um plano de expansão da cidade para o Sul, onde constrói uma cidade satélite de carácter misto - habitação e serviços – Talatona.

Desenvolvido num modelo de influência brasileira, com o qual a cidade não tem tradição, é esse o pólo mais significativo de construção pós-Independência, numa pauta de condomínios fechados, alguns de grande qualidade e de edifícios públicos com uma arquitectura influenciada pelo Movimento Moderno, alguns deles igualmente bem desenhados. 

Para a maioria da população, o plano de um milhão de casas prometido, em 2008, às Nações Unidas pelo Presidente José Eduardo dos Santos, com base na cooperação chinesa e no Gabinete de Reconstrução Nacional, reduz-se às urbanizações apelidadas erroneamente de novas centralidades, de que é exemplo o Kilamba, que são bairros residenciais sem infra-estruturas de equipamentos públicos e sociais.   

Plano-Director de 2015 

Só em 2015 se elaborou um novo plano-director, uma adjudicação directa à empresa Broadmay/Malay, uma experiente empresa inglesa, com um forte curriculum em planos-directores, mas sem experiência de elaboração para um país africano. Deram apoio a Universidade Nova de Lisboa e em Angola a Urbinveste, em termos administrativos. Não integrou a equipa nenhum arquitecto ou urbanista angolano, nem a Ordem dos Arquitectos foi consultada.

Dado que tem sido um denominador comum das encomendas do Estado a equipas estrangeiras, negligenciando sistematicamente arquitectos nacionais ou sequer consultores seniores nacionais, os modelos são importados e nada ajustados ao clima e cultura nacionais.

O Plano-Director de 2015 de Luanda refere textualmente: “Não obstante a abrangência à província (excepto a Quiçama), procedeu-se à identificação das áreas prioritárias de intervenção, a saber: Centro da Cidade de Luanda e frente marítima, Corredor de Cambambe e Centro da Cidade de Viana.

O plano-director apenas considera áreas prioritárias de intervenção da grande Luanda: o Centro da Cidade de Luanda e frente marítima, Corredor de Cambambe e Centro da Cidade de Viana, ou seja, as zonas da cidade que já têm infra-estruturas sanitárias, asfalto, luz, construção com alguma qualidade urbana, deixando de fora centenas de quilómetros quadrados sem infra-estruturas sanitárias e sociais que abrangem três quartos da área geográfica da área metropolitana de Luanda e três quartos da sua população. Até agora não existem reflexos práticos do plano na reestruturação da cidade”. 

O corpo da cidade depois da paz em 2002 

A longa guerra civil, o êxodo das populações rurais para a cidade, a insegurança e a degradação das estruturas e o pó geraram uma necessidade de encerrar os espaços de relação de que a cidade vivia: espaços públicos e semipúblicos que se apropriaram como privados, muros que se levantaram, varandas que se encerraram, transparências que se anularam e diálogos que se reduziram.

E “a cidade aberta”, permeável e dialogante, que a arquitectura de Vasco Vieira da Costa incentivava, fechou-se sobre si. O cansaço dos anos, de uma grande dureza e privação, e o pó, sempre o pó, olham para os corpos modernos com vontade de os substituir por paredes cegas pintadas de fresco, onde não há memórias, superfícies laváveis, fáceis e de grande efeito.

O carácter político que se incrustou nas leituras da cidade moderna, colando-a ao tempo colonial, tem propagandeado um olhar redutor que distorce o carácter antifascista que caracteriza as arquitecturas das cidades angolanas depois da Independência.

A utopia subterrânea acabou por se converter em ‘Ancien Regime’ contra o qual se têm levantado as novas demonstrações físicas. Os poderes têm construído modelos que têm no rosto o brilho e a opulência, hermeticamente encerrada, do capital financeiro.

A especulação imobiliária recorre ao repertório do estilo internacional numa relação autista com o clima e com a cultura, embora formalmente referenciado ao Movimento Moderno. Há um apelo geral pela formalização de grandes vãos fixos, envidraçados, em espaços onde o conforto térmico é apenas garantido pelos ares-condicionados.

Basicamente, estruturas em aço e vidro que se escondem atrás de muros altos e cegos, que isolam esses corpos das relações colectivas e da dinâmica da cidade. Como diz L. Rowe: “A utopia abandonada pelo intelecto torna-se ingénua e, mesmo que impregnada pelas suas formas, já não está impregnada de conteúdo social e filosófico”.

E, se hoje é possível afirmar que o dualismo programado ‘caiu’ e que não há discriminações explícitas nas formas de organização do espaço, isso deve-se à ausência de escolhas e intervenções e não a qualquer estratégia capaz de valorizar a vitalidade e os valores das diversas formas de ocupação e sobre elas imaginar e construir. 

A descaracterização da cidade 

A população, em geral, está dividida sobre a apropriação do património da Arquitectura Moderna como sendo uma arquitectura angolana ou apenas uma herança colonial, e essa questão tem-se sobreposto à análise da qualidade dessa arquitectura e também à apropriação do seu ideário.

A dura realidade urbana, em termos sociais, e a degradação do espaço público acabam por condicionar a manutenção das linguagens originais da Arquitectura Moderna.

O discurso sobre a sua defesa como património ou como modelos inteligentes de uma arquitectura já então sustentável, marcada por soluções bioclimáticas perfeitamente ajustadas ao clima, dominantemente tropical, tem sido menosprezado, num discurso político que confunde o tempo colonial até 75 com a arquitectura produzida entre os anos 50 e 75, que é uma arquitectura moderna assente em princípios democráticos e anticoloniais.

Tem-se deitado abaixo bastante património fundamental da Arquitectura Moderna e, ironicamente, conservados os edifícios do tempo da ditadura, chamada Arquitectura do Estado Novo.

Após 2002, o ano do fim da guerra civil, surgiu o boom da construção anónima e internacionalista, sem quaisquer referências culturais e sem qualquer atenção às exigências climáticas a respeitar num país tropical.

Sem plano urbanístico nem regras urbanas que contextualizassem os mesmos, conforme uma ordem harmónica com as pré-existências históricas e urbanas, apostou-se numa arquitectura desidentitária, volumes de vidro exposto, usando o centro histórico como lugar privilegiado, mudando completamente a configuração da baixa da cidade, já que, pela altura, os edifícios criaram uma barreira contra a passagem de vento, uma reflexão solar que aumentou a temperatura da urbe e retirou o usufruto da vista da baía ao resto da cidade.

Pululam sem articulação urbana e desrespeitam muitas das regras elementares que a difícil orografia da cidade exige e o clima também. A cidade e a qualidade arquitectónica têm sido sacrificadas pela especulação imobiliária e os interesses individuais, face à incapacidade do cidadão comum de exigir das autoridades competentes o respeito pelas leis urbanas, a construção da cidade para todos, a defesa e a criação de mais espaços públicos, bem como a saúde sanitária.  





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