Luanda – A cidade de Cartum, capital do Sudão, regista, desde 15 de Abril último, violentos confrontos armados, que já provocaram a fuga de centenas de cidadãos estrangeiros, incluindo 10 angolanos, uma situação considerada caótica.
Por Frederico Issuzo, jornalista da ANGOP
Os angolanos evacuados do “inferno sudanês”, todos eles estudantes, chegaram à casa sãos e salvos, depois de uma experiência amarga e desesperante, nos primeiros dias do conflito entre o Exército regular e as Forças de Apoio Rápido (RSF).
Já em Luanda, contaram o seu calvário e como foi difícil a saída de Cartum, onde estavam em perigo de vida antes de iniciar a marcha em direcção às fronteiras da Etiópia e do Egipto, dois vizinhos do Sudão.
A erupção das confrontações, na capital sudanesa e noutras cidades do país, apanhou de surpresa o Mundo inteiro, que tinha as atenções viradas para a reposição do processo de transição política interrompido pelo golpe de Estado de 25 de Outubro de 2021.
Os dois campos em confronto são comandados pelos generais Abdel Fattah al-Burhan e Mohamed Hamdan Daglo “Hemetti,” os mesmos protagonistas da deposição do regime de Omar al-Bashir, a 11 de Abril de 2019, antes de coliderarem o processo de transição.
Burhan é o actual comandante-em-chefe das Forças Armadas Sudanesas (FAS) e presidente da Junta que governa o Sudão, ao passo que Hemetti, o seu vice no órgão de transição, lidera as RSF, uma poderosa milícia saída do grupo Janjawid de Darfur.
Foi um autêntico “balde de água fria” que deitou por terra as esperanças do povo sudanês, que sonhava com o advento da democracia, desde o derrube de Bashir por via da revolta popular assistida pela dupla Burhan-Hemetti.
Apesar da surpresa, a nova rebelião foi acolhida por muitos como o resultado de uma silenciosa luta de poder iniciada com a queda de Bashir, há precisamente quatro anos.
A aliança dos dois ter-se-ia transformado em competição existencial, incubada e momentaneamente contida pela sua hostilidade comum à transição democrática, exigida pelos civis e pelo Ocidente, mas temida pelas monarquias do Golfo.
Hemetti diz agora que o seu rival é um “islamita radical” e que as RSF estão a combater pelo povo sudanês para garantir o “progresso democrático há muito esperado”.
No seu contra-ataque, Burhan acusou Hemetti de orquestrar uma rebelião contra o Estado, com a intenção de se apoderar dos seus recursos e ampliar a sua riqueza pessoal.
Disse apoiar a ideia de regresso ao poder civil, mas que só o entregará a um governo eleito.
Muitas vozes, porém, duvidam da genuinidade das teses democráticas dos dois generais no meio de suspeições de que eles tencionem agarrar-se ao poder para não perderem a riqueza e a influência a este inerentes.
Ao Exército sudanês, que antes da secessão do sul, em 2011, recebia 80 por cento do orçamento do Estado, são atribuídas ambições para ficar com as receitas das RSF, a fim de compensar a perda dos recursos petrolíferos do sul.
As RSF são um grupo armado criado por Bashir, em 2013, e que conheceu um crescimento rápido com o controlo dos fluxos migratórios em direcção à Europa e os contrabandos com alguns países vizinhos.
Oficialmente, a sua missão era vigiar as fronteiras sudanesas com o Tchad e a Líbia, mas sabe-se que a milícia desempenhava o papel de protector do Governo de Bashir de eventuais conspirações dos generais e outros temíveis oficiais dos serviços de inteligência.
Foi ainda uma importante fonte de apoio logístico à milícia russa Wagner para contornar as tropas francesas no Tchad e na República Centro-Africana (RCA).
Enquanto isso, Hemetti é também apresentado como um riquíssimo homem de negócios que fez a sua fortuna a partir do fornecimento de milhares de mercenários à Arábia Saudita durante a guerra no Iémen, e por altura da insurreição do marechal Khalifa Haftar, na Líbia.
Além disso, detém o controlo de áreas de garimpo de ouro de Darfur e sua venda ilícita para refinarias, em Dubai.
Cruzamento de interesses regionais
Banhado pelo Mar Vermelho na parte oriental, o Sudão está rodeado de sete países saídos de conflitos armados ou em instabilidade político-militar pós-conflito: Líbia, Egipto, Tchad, Sudão do Sul, Etiópia, Eritreia e RCA.
Existem rumores de que, neste momento, as RSF contam com o apoio de Khalifa Haftar, comandante militar do leste da Líbia, que teria enviado para o Sudão um avião com abastecimento militar para os homens de Hemetti, enquanto o Egipto teria feito o mesmo com o lado oposto.
Mas Haftar desmentiu, através do porta-voz do seu Exército Nacional Líbio (LNA), Almed Al-Mismari, qualquer ajuda prestada às RSF, declarando que “apoiamos e continuaremos a apoiar a estabilidade do Estado do Sudão e a segurança do seu genuíno povo árabo-africano”.
Al-Mismari disse que o LNA está em contacto com as partes beligerantes a apoiar os esforços para se alcançar a cessação das hostilidades no Sudão, e que estaria disposto para desempenhar o papel de mediação.
Dias antes do início dos confrontos, o filho de Haftar, al-Sidiq Haftar, visitou o Sudão depois de ser designado presidente honorário do clube sudanês Mareekh Club, ao qual doou dois milhões de dólares americanos numa visita em que também se encontrou com Hemetti.
A Eritreia tem sido também citada com alguma insistência na lista dos vizinhos do Sudão que se posicionam a favor das RSF, cujo líder foi recebido, recentemente, pelo Chefe de Estado eritreu, Isaías Afewerki, em Asmara.
Um dos grandes aliados da Etiópia, que é por sua vez “inimiga comum” do Sudão e do Egipto, à Asmara é atribuída certa influência sobre o leste sudanês e o Mar Vermelho, onde ajuda as tribos que controlam este perímetro estratégico a equipar e armar-se.
Sabe-se que, antes do início dos confrontos, o Egipto tinha soldados seus estacionados em Cartum, em virtude de um acordo de cooperação militar assinado com Burhan.
A sua presença foi oficialmente justificada com a realização de exercícios militares conjuntos com os seus congéneres sudaneses, mas muitos suspeitam que, depois de apoiar Bashir durante a guerra de Darfur, em 2003, os mesmos soldados estariam agora a apoiar activamente Burhan.
Segundo observadores, tanto para o Egipto, quanto para as monarquias do Golfo, designadamente Arábia Saudita e Emiratos Árabes Unidos, a prioridade é evitar o advento de uma democracia às suas portas.
Do outro lado do Mar Vermelho, o Sudão é considerado uma reserva de terras agrícolas atravessadas pelas águas do Nilo e um jazigo promissor de riquezas minerais, assim como uma porta de entrada para o continente africano.
Há ainda o receio de um confronto inevitável entre os países ocidentais e a Rússia, que aparenta ter laços estreitos com os dois campos rivais, por via da aproximação entre o grupo Wagner e as RSF, por um lado, e entre o Governo russo e o Exército sudanês, por outro.
Informações postas a circular na imprensa internacional referem que, em 2019, o grupo Wagner foi convidado pelas RSF a intervir na repressão das manifestações populares pelas ruas de Cartum, depois do derrube de Bashir.
Antes disso, os mercenários Wagner já operavam em Darfur com “luz verde” de Hemetti, mas tudo indica que esse “casamento” pode custar caro a este último, a ponto de empurrar os Estados Unidos para o campo de Burhan e influenciar o posicionamento dos vizinhos do Sudão.
Há, inclusive, relatos de que o director da CIA, William Burns, terá dissuadido o Presidente da República Centro-Africana (RCA), Faustin-Archange Touadéra, de estabelecer alianças com o comandante das RSF.
O mesmo recado teria chegado também a Mahamat Idriss Déby do Tchad, onde a situação no Sudão é acompanhada com preocupação devido ao seu impacto na estabilidade regional, tendo já levado ao encerramento da fronteira comum.
Por seu turno, o Governo russo acaba de obter uma concessão do Exército sudanês para abrir uma base naval no Mar Vermelho, uma pedra adicional em direcção ao Oceano Índico e um posto de observação privilegiado face à Arábia Saudita na maior passagem marítima do Planeta.
Alguns analistas olham para esse projecto como tendo um grande potencial de atrair “hostilidades” dos EAU, de Israel e também da Arábia Saudita, precisamente pela sua posição estratégica naquela que é descrita como a passagem marítima mais frequentada do Mundo.
Correlação de forças pouco clara no Golfo
A correlação de forças nos países do Golfo entre os dois campos em confronto, no Sudão, poderá ser determinante, mas revela-se muito “fusca” e propensa a ser influenciada pelas escolhas americanas.
Hemetti goza de simpatias dos Emirados Árabes Unidos (EAU) com cujas forças, coligadas com as da Arábia Saudita, milhares de soldados seus combateram, no Iémen, contra os rebeldes houthis, a partir de 2016.
Existe igualmente uma implicação conjunta de soldados dos EAU e das RSF no contrabando de ouro saído da região ocidental sudanesa de Darfur, em áreas de garimpo controladas pelas forças paramilitares de Hemetti.
Todavia, alguns especialistas duvidam que essa experiência comum de um passado recente seja suficiente para mobilizar uma intervenção directa das duas monarquias a favor das tropas de Hemetti.
É sabido que as duas monarquias do Golfo nunca esconderam a sua aversão ao que chamam de “promiscuidade” do Islão na política, que é, na sua óptica, o que tem estado a promover o general Burhan, no Sudão.
Por outro lado, existe a percepção de que os EAU não parecem interessados por uma intervenção nem dispõem de forças militares necessárias e sabem que as RSF “são incapazes de dirigir o país”.
No mesmo sentido, o príncipe herdeiro saudita, Mohammed Bem Salman, pretende fazer da costa do Mar Vermelho o centro do seu projecto “Visão 2030” e não estaria, por isso, disposto a gastar dinheiro na crise sudanesa.
O que lhe importa são as riquezas do Sudão, incluindo a água do Vale do Nilo, que a situação actual lhe impede de explorar, explica Marc Lavergne, especialista do Médio Oriente árabe e do Corno de África.
Diante desse quadro preocupante, que vem sendo acompanhado pela comunidade internacional, em geral, e pela União Africana, em particular, fica no ar uma grande questão entre o povo sudanês: valeu a pena a revolta que afastou Bashir? IZ