Namibe – A fome que assola as províncias do Namibe, da Huíla e do Cunene, devido à seca severa que se regista na região sul de Angola, tem provocado a desestruturação das famílias e o aumento vertiginoso do uso do trabalho infantil, uma prática proibida no país.
Por Anabela Fritz
No Namibe, este fenómeno cresce assustadoramente e envolve crianças com idades entre os 6 e os 14 anos, que abandonam os seus lares em busca de sobrevivência, deambulando pelas ruas à procura de emprego ou de um trabalho qualquer que lhes garanta o sustento.
Muitos preferem trabalhar em fazendas. A partir das 5/6 horas começam a pastar animais, lavrar campos agrícolas ou a regar plantações, a maioria deles sem o devido equipamento de protecção, como fatos, botas e luvas, e, pior ainda, desprovidos de meios de biossegurança contra a Covid-19.
Nestes sítios, petizes têm direito a uma refeição, acomodação e medicamentos e, no final de cada lavoura (3 meses), recebem uma remuneração em função do acordo celebrado com o patrão no acto da contratação, que ronda entre os 18 e os 25 mil Kwanzas.
“O mais difícil é pastar os animais, porque temos de percorrer grandes distâncias para encontrar capim e água e controlar bem o gado para não se perder, senão somos castigados pelos donos”, enfatizaram os pequenos pastores Século Mbuta, João Canivete e Tomás Mwakopotola, nas línguas nacionais mucubal, nyaneka e mumuila, respectivamente.
Crianças trabalham para não roubar
A maioria das crianças e adolescentes disse à ANGOP que é preferível dedicarem-se a essa actividade do que ficar nas ruas a pedir esmola e receber maus tratos, e, muitas das vezes, sem conseguir nada para comer.
“A fome e a seca forçaram-nos a chegar até aqui no Namibe, onde encontramos trabalho e estamos bem“, ressaltaram as crianças, a maioria proveniente da Huíla e do Huambo.
Segundo elas, o trabalho não é difícil, porque já foram ensinados pelos pais, desde a tenra idade, sobre como cultivar o campo, apanhar lenha e domesticar animais.
Denunciaram que foram abandonados pelos pais, nessas zonas agrícolas, depois de lhes ter sido explicada a necessidade de trabalhar e guardar o salário para, depois de alguns anos, regressarem às suas zonas de origem e poderem comprar animais, sobretudo bois e cabritos, principal riqueza da população da região.
“Aqui temos tudo e no fim de cada colheita nos pagam e guardamos o dinheiro para, depois, levar aos nossos pais e comprar animais, para, também, sermos patrões ou termos uma pequena fazenda”, sustentaram as crianças Madalena Ndamuca, Teresa Silvina e Félix Sandumba Capolo.
Instadas a comentar a falta de equipamento adequado para desenvolver as suas actividades, responderam que os patrões alegam que o material é muito caro e não dá para comprar para todos.
Fazendeiros defendem-se
Agricultores justificaram que a exploração de mão-de-obra infantil ocorre em quase todo o mundo, considerando importante que alguém acolha essas crianças para que possam aprender a ganhar a vida com sacrifício e, do seu suor, ter algo para o sustento.
“O trabalho de menores nos campos é antigo, mas, hoje, as pessoas consideram isso como exploração. Nós, aqui, damos tudo que elas têm direito, como alimentação, acomodação, medicamento e, algumas vezes, roupa, e ainda são remunerados. Muitos guardam o dinheiro e, depois de algum tempo, levam para os seus familiares na Huíla, Huambo e Bié”, argumentou o fazendeiro Lucas Pedro.
Por seu turno, Manuel Kalumbo, também agricultor, afirmou que se sentiu na obrigação de recolher crianças e adolescentes porque se não o fizesse eles “acabariam por roubar as nossas culturas na calada da noite e vendê-las, para ter algo para comer”.
O director do Gabinete Provincial da Agricultura e Desenvolvimento Rural no Namibe, Zonzo Puisa, revelou a existência de mais de 50 mil crianças e adolescentes a trabalharem em diversas zonas agrícolas nos cinco municípios da província, designadamente Moçâmedes, Bibala, Virei, Kamucuio e Tômbwa.
“Estamos a notar um fenómeno nunca visto na nossa província. Muita gente a emigrar do campo para as cidades e vice-versa, o que pressupõe o salve-se quem puder. Futuramente, vamos ter na nossa sociedade muitos ladrões, prostituição, tráfico de drogas e outros males”, alertou.
Zonzo Puisa é de opinião que, para combater a exploração da mão-de-obra infantil nas fazendas e noutros lugares, o Estado deveria criar políticas direccionadas às zonas rurais, implantando projectos geradores de emprego.
Propôs a realização de um encontro regional entre as províncias do Namibe, da Huíla e do Cunene, para gizar estratégias conducentes a solução deste fenómeno, que “tem criado vários transtornos às comunidades”.
“Devido à similitude de hábitos e costumes nas zonas agrícolas destas províncias, igrejas, sociólogos, psicólogos, governos e autoridades tradicionais deviam reunir-se para procurar soluções para este problema, pois são crianças a pastar cabritos, bois e outros animais, estando já moldadas para trabalhar desde a tenra idade”, advogou.
A OIT e o trabalho infantil
As Convenções 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) classificam como trabalho infantil aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país.
O trabalho infantil priva as crianças de viver a sua infância, de frequentar a escola, do seu potencial e da sua dignidade, sendo prejudicial ao seu desenvolvimento físico e mental.
De acordo com a OIT, nas suas formas mais extremas, o trabalho infantil envolve crianças escravizadas, separadas das famílias, expostas a sérios riscos e doenças e/ou deixadas para se defenderem sozinhas nas ruas das grandes cidades – muitas vezes em idade muito precoce.
Para que uma actividade seja considerada trabalho infantil é preciso avaliar uma série de factores, como a idade da criança, o tipo e horas de trabalho realizados e as condições em que é executado.
Segundo a OIT, a prática caiu 38 por cento na última década, mas 152 milhões de crianças continuam afectadas, tendo a pandemia da Covid-19 piorado a situação.
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2021 como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil, numa resolução adoptada em Julho de 2019, que destaca a importância das Convenções Internacionais da OIT sobre a idade mínima para o trabalho e as piores formas de trabalho infantil.
A resolução reafirma “o compromisso de os Estados Membros adoptarem medidas imediatas e eficazes para proibir e eliminar as piores formas de trabalho infantil e erradicar todas as formas de exploração do trabalho infantil até 2025”, conforme previsto na meta 8.7 do Objectivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU.
O Objectivo 8 do Desenvolvimento Sustentável recomenda a promoção do crescimento económico sustentado, inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho decente para todos.
A meta 8.7 do ODS estabelece a tomada de medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e, até 2025, acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas.
Alerta da OIT e do Unicef
Em Junho de 2020, a OIT e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertaram que milhões de crianças corriam o risco de serem empurradas para o trabalho infantil devido à crise da Covid-19.
A pandemia pode levar ao primeiro aumento deste indicador após 20 anos de progresso e, além disso, as crianças que já trabalham podem estar sujeitas a maior carga horária e condições mais perigosas, com mais danos à sua saúde e segurança.
A OIT e o Unicef propõem combater as ameaças com protecção social mais abrangente, acesso mais fácil ao crédito, promoção de trabalho decente para adultos, e o encorajamento do regresso das crianças à escola, eliminando o preço das matrículas e outras taxas.