Cuito – Desde o período da guerra pós-eleitoral de 1992, que afectou duramente as províncias do Bié e Huambo, o Cuito regista um grande número de crianças órfãs, muitas delas, ainda hoje, com o futuro incerto e abandonadas nas ruas da cidade.
Por Bartolomeu Nascimento
São as chamadas crianças de e na rua, que se refugiam em várias artérias desta histórica localidade do Bié, onde se estima a existência de 83 petizes, de acordo com dados disponibilizados pelo Instituto Nacional da Criança (INAC).
Segundo as estatísticas desta organização vocacionada para a defesa dos direitos dos menores, o número de petizes fora do convívio familiar cresceu entre 2021 e 2022, só no Cuito, passando de 52 para 83, realidade que preocupa as autoridades locais.
Trata-se, na verdade, de um número que pode estar aquém do real, tendo em conta a facilidade com que se encontram, diariamente, os menores nas ruas do Cuito, apesar das políticas em curso, da parte do Governo, para combater este fenómeno social.
Ainda hoje, 53 crianças de e na rua desta urbe foram reintegradas às suas respectivas famílias, numa acção do INAC.
De acordo com especialistas, as causas do aumento de crianças de e na rua são várias, entre as quais a condição social, abusos de adultos contra os menores, uso de drogas, abandono dos progenitores, negligência, violência e acusações de feitiçaria.
Na centralidade do Horizonte do Cuito, por exemplo, os moradores são confrontados todos os dias, com crianças de rua, sendo que muitas delas são atiradas para esta condição pelos próprios progenitores ou encarregados de educação.
É o caso do menor Mateus Francisco, de 10 anos de idade, que se tornou pedinte por orientação da mãe, para auxiliar, ainda com tenra idade, no sustento dos irmãos.
Morador no bairro Santo António, arredores do Cuito, o menor conta que nunca foi à escola, porque a mãe não tem condições para comprar material didáctico.
Apesar de estar nesta condição há algum tempo, Mateus deseja um dia deixar as ruas da cidade e ir à escola, para aprender a ler, escrever e ajudar o país a crescer.
Por sua vez, o adolescente Avelino Catchiuco, de 13 anos de idade, também espera por dias melhores, alimentando o sonho de deixar as ruas e viver uma nova realidade.
Morador do bairro Camalaia, na comuna do Cunje (Cuito), conta que está na rua com o objectivo de ajudar a mãe nas despesas de casa, porquanto o seu pai trabalha numa empresas de construção civil e tem poucos recursos para atender a família.
Embora viva nas ruas, Avelino Catchiuco trabalha como engraxador e tudo faz para conseguir um assento de nascimento e, consequentemente, ir à escola.
Quem também abandonou a casa para se fixar nas ruas é o adolescente João Salvador, 14 anos de idade, morador no bairro Catena (arredores da cidade do Cuito).
Segundo o mesmo, abandonou a casa da família pelo facto de o seu padrasto ser violento e constantemente cometer actos de agressão contra o menor.
"O meu padrasto obrigava-me a pedir esmola na rua, nos carros e nas lojas, mas quando levava o dinheiro, recebia-me para comprar bebida", denuncia o menor.
João Salvador conta que estudou apenas até a terceira classe, sublinhando que se sente muito melhor com os seus amigos (meninos de rua e na rua) em relação à família.
O mesmo destino tem a adolescente Maria Adriano, 14 anos de idade, filha de uma mãe abandonada pelo pai, que sonha em ser professora no futuro.
Afirma que o sofrimento nas ruas é grande, pelo que solicita apoio da sociedade angolana, em geral, e das autoridades da província do Bié, em particular.
A menor informa que sai todos os dias de casa para vender o pequeno negócio (abacate), mas, muitas vezes, não são comprados, complicando a sua gestão.
Apesar do negócio, reconhece que nas ruas enfrenta muitos problemas.
“Os homens tentam aliciar-me, prometem dinheiro e pedem para fazer sexo, mas tenho resistido às tentações e tenho a sorte de nunca ter sido violada”, testemunha.
INAC atento aos casos de violência
Dados disponíveis dão conta que o Instituto Nacional da Criança (INAC) na província do Bié registou, nos primeiros três meses deste ano, 356 casos de violência contra crianças, sendo 180 de exploração e trabalho infantil, 98 de violência física, 62 psicológica, seis casos de fuga à paternidade, três tentativas de tráficos de menores, igual número de abusos sexuais, dois homicídios voluntários, uma disputa de guarda e cuidado da criança e uma tentativa de violência sexual.
Em 2021, foram anotados 966 casos, dos quais 404 são de exploração ao trabalho infantil, 255 de violência física, na maioria praticados na própria família.
Constam ainda 25 casos de abuso sexual, 145 violência psicológica, 134 de fuga à paternidade e maternidade, assim como três de disputa de aguarda de menores.
Com o objectivo de reduzir a violência contra a criança, a instituição criou 63 redes comunitárias, que têm a missão de defender e divulgar os direitos dos menores a nível dos nove municípios desta região.
Tem ainda uma linha telefónica gratuita e confidencial, denominada SOS (15015), em que o cidadão pode denunciar casos de violência contra a criança.
O INAC pretende, ainda este ano, apostar na formação das autoridades tradicionais sobre os direitos da criança, para desencorajar a violência contra esta franja e outros comportamentos embaraçosos, como o casamento e a gravidez em adolescentes.
Para isso, tem como parceiros a Visão Mundial, a ONG Vida Saudável, ADAC, CVA e People In Need, igrejas, órgãos de comunicação social, entre outros organismos do Governo, inserido no sistema de protecção da criança, mormente na divulgação dos 11 compromissos assumidos pelo Governo angolano.
Conquanto, o cidadão Vasco Cambovo condena a nova moda “instrumentalização de menores” e diz que a situação é mais caótica por ser iniciativa dos progenitores.
Segundo o mesmo, as crianças alegam ser obrigadas a pedir e se, no final do dia, não levarem dinheiro, são castigadas fisicamente ou psicologicamente pelos pais.
Religiosos repudiam instrumentalização
O padre Jorge Sachipangue Faustino, da Sé Catedral (Igreja Católica na cidade do Cuito), considera que a instrumentalização da criança compromete o seu futuro, visto que não se deve quebrar etapas no processo de evolução de uma pessoa.
De acordo com o sacerdote, na igreja aparecem muitas crianças pedintes. “Aparecem em horas de ir à escola, o que reflecte um futuro muito difícil para a sociedade.
“As crianças instrumentalizadas hoje não serão úteis no amanhã, até porque a Constituição da República de Angola condena a instrumentalização da criança e a Igreja Católica também”, reforçou.
Aconselhou, por isso, um trabalho profundo para identificar-se a origem do mal, em que até crianças abandonam os lares à procura de condições de vida.
O religioso apontou a desestruturação familiar, fuga à paternidade, poligamia, pobreza de algumas famílias, insuficiência de diálogo entre casais entre as causas do fenómeno crianças na rua, muitas delas instrumentalizadas pelos país.
Já o pastor Raimundo Isidro, secretário provincial Igreja Evangélica dos Irmãos em Angola (IEIA) no Bié, considera irresponsável a instrumentalização de crianças.
Segundo o religioso, a criança precisa de cuidados até atingir a maturidade e levar uma vida apropriada, a fim de contribuir para o engrandecimento da sociedade.
No seu entender, as vicissitudes, como a desestruturação familiar, poligamia e outros males, levam muitas crianças a serem arrancadas a força da família, para viverem na rua ou em outras famílias, onde são, muitas vezes, usadas como mão-de-obra barata.
Ressaltou os esforços do Governo para a construção de instituições socioeconómicas e culturais vocacionadas para a defesa dos petizes, sublinhando, entretanto, a necessidade de a educação iniciar nas próprias famílias.
Para o reverendo Domingos José, da Igreja Universal do Reino de Deus em Angola, os pais devem ser os amigos, companheiros e orientadores dos seus filhos.
“O pai, ao instruir o filho a pedir auxílio na rua, está a expor um inocente a actos de violência física, psicológica, sexual e até a raptos de menores”, alertou.
Mesmo em dificuldades, defendeu, os adultos devem sempre colocar em primeiro lugar a integridade dos petizes e não usá-los como fonte de rendimento.
Na mesma direcção, o sociólogo Nelson Cacungula realçou a importância de os pais e encarregados de educação apostarem na formação académica e técnico profissional dos filhos, mas rematou que “a família é o lugar ideal para uma criança”.