Luanda – No dia 4 de Abril de 2002, há precisamente 19 anos, Angola enterrava, em definitivo, um dos conflitos armados mais longevos da história da Humanidade, com um saldo catastrófico em vidas humanas e danos materiais.
Por Frederico Issuzo
Os dados disponíveis apontam para um balanço de mais de 500 mil mortos, entre militares e civis, incluindo crianças, além de prejuízos económicos incalculáveis.
Estima-se que os confrontos militares tenham deixado um saldo de 4,28 milhões de deslocados, ou um terço da população, e 1,7 milhão de refugiados, sobretudo em países vizinhos como a República Democrática do Congo (RDC), a Namíbia e a Zâmbia.
Segundo as Nações Unidas, cerca de 15 milhões de minas terrestres mutilaram perto de seis milhões de pessoas e inviabilizaram a agricultura, a pecuária e o turismo local.
Foram praticamente 27 anos de guerra, descrita como a mais mortífera e prolongada de África, com apenas dois intervalos de paz relativa, em 1991-1992 e 1994-1998.
O primeiro interregno, desde os primórdios da independência nacional, em 1975, surge com os Acordos de Bicesse, de 1991, e, o segundo, com o Acordo de Lusaka, de 1994.
Interesses antagónicos, entre os nacionalistas angolanos que pretendiam tornar o país verdadeiramente independente e os que, por outro lado, almejavam o ocupação estrangeira de Angola estiveram na base do conflito.
Esse confronto resume as verdadeiras raízes da tragédia, que levou consigo famílias inteiras e deixou o país em escombros e “psicossomaticamente morto”.
Na verdade, as fortes discórdias entre os grupos nacionalistas envolvidos na guerra anticolonial e na luta pelo poder, a impreparação do colonizador para a transição e os efeitos da Guerra Fria tiveram grande influência para o acender do conflito.
A este propósito, observadores sublinham que os nacionalistas se revelaram incapazes de trabalhar juntos, daí terem iniciado uma desesperada corrida pela supremacia, antes da data marcada para a independência, o 11 de Novembro de 1975.
A título de exemplo, é várias vezes citado o incumprimento do Acordo de Alvor, que fixava as bases para a transição do poder entre a potência colonizadora (Portugal) e os três movimentos de libertação então reconhecidos (MPLA, UNITA e FNLA).
Datado de 15 de Janeiro de 1975, o documento propunha-se a formalizar um cessar-fogo geral e a criar um governo de transição, integrado em proporção igual por representantes dos três movimentos e de Portugal.
O Acordo de Alvor fixava, na essência, eleições gerais para Outubro de 1975 e a proclamação da independência a 11 de Novembro do mesmo ano, entre outras cláusulas do pacto celebrado na região portuguesa de Algarve.
Entretanto, depois de ver “a luz do dia”, com a tomada de posse do Governo de transição, a 31 de Janeiro, o pacto acabou estranhamente convertido em “nado morto”, resultando na partida abrupta dos portugueses.
Diante deste cenário, a posição estratégica de Angola, na África Austral, tornou o país num dos espaços mais apetecíveis para o confronto entre os mentores da Guerra Fria (1947-1991).
Nessa altura, e longe das concorrências para controlar os recursos naturais, o Bloco Socialista, liderado pela antiga União Soviética (URSS), procurava essencialmente implantar no Mundo o seu sistema político e expandir a sua influência.
Na outra margem do rio, o mundo ocidental, com os Estados Unidos (EUA) de Gerald Ford à cabeça, apostava no fim do comunismo, a todo o custo e com todos os meios.
Os três movimentos de libertação, expostos como presas fáceis, desentendidos mas sem meios próprios para caminhar sozinhos, viraram-se para o exterior de mão estendida, acabando o MPLA por se aliar ao Bloco Socialista e os dois outros à parte contrária.
Claramente, o critério dessas alianças está mais próximo do estado de necessidade de ambos os lados do que, propriamente, de genuínas convicções ideológicas dos seus patrocinadores (Bloco comunista e bloco ocidental).
Só assim se pode explicar que o MPLA tenha formalizado a sua opção socialista e a sua transformação em partido marxista-leninista, apenas em 1978, três anos depois de proclamar a independência, num quadro político de extrema tensão.
Só assim se explica, igualmente, que, mesmo com o abandono posterior do marxismo-leninismo pelo MPLA, apregoado como a principal razão da sua oposição, a UNITA continuasse a lutar, elevando, inclusive, a intensidade da sua oposição militar.
É, portanto, factual, que mesmo depois do desaparecimento do “perigo” comunista, no país, após o fim da Guerra Fria, os angolanos continuaram de costas viradas e a matar-se cegamente, ressalvada a retirada dos homens da FNLA.
Mas, no início, o mesmo argumento do combate ao comunismo alimentou um antagonismo visceral e violentos confrontos, que culminaram em três proclamações unilaterais da independência, respectivamente, em Luanda, no Huambo e Ambriz.
O MPLA proclamou a República Popular de Angola, em Luanda, a UNITA a República Social Democrática de Angola, no Huambo (centro), e, a FNLA, a República Democrática de Angola, em Ambriz, na província do Zaire (norte).
As proclamações foram simultâneas, mas, 12 dias mais tarde, os dois últimos celebram um pacto, em 23 de Novembro, e fundem-se num único governo de coligação para a República Popular Democrática de Angola.
Com Huambo como capital, esta República tinha Holden Roberto (FNLA) e Jonas Savimbi (UNITA) como co-presidentes e José Ndele e Johnny Pinnock Eduardo como primeiro-ministros.
Mas acabou por prevalecer a independência proclamada, em Luanda, pelo MPLA, de António Agostinho Neto, com a protecção da antiga URSS e de Cuba, ao arrepio dos anseios dos outros dois movimentos apoiados pelo Ocidente.
Igualmente inconformados, o vizinho Zaire, de Mobutu Sesse Seko, e a África do Sul, de Pither Botha, colocaram-se à disposição dos EUA para ajudar a impedir a instalação de um poder pró-soviético em Angola.
A Botha interessava tudo o que ajudasse a impedir o apoio de Angola aos nacionalistas namibianos, determinados a lutar pela sua libertação do jugo colonial da África do Sul.
Já para o Zaíre de Mobutu, o interesse central era mais económico do que político. Com uma economia degradada e sem acesso ao mar, ao gigante da África Central fazia falta o controlo do CFB (Caminho de Ferro de Benguela) e da zona de Cabinda.
Esta linha férrea, que liga o litoral e o leste de Angola, até o Zaíre, escoava a sua produção de cobre e de 70% dos produtos mineiros provenientes da região do Shaba, no sul, ao passo que o petróleo de Cabinda daria “grande jeito” aos problemas económicos.
Estavam lançadas as sementes para mergulhar o país numa longa guerra fratricida, com repercussão internacional e efeitos devastadores para a economia nacional.
De Gbadolite ao Luena
Bill Clinton e Mikhail Gorbatchov são nomes que, às vezes, passam despercebidos na tradicional narrativa dos eventos, em Angola, até ao alcance da paz definitiva.
As duas personalidades deixaram indeléveis as suas pegadas nos caminhos que conduziram ao fim da guerra, no país, com o Acordo de Paz de 4 de Abril de 2002.
Gorbatchov, com as suas reformas da Perestroika (reestruturação) e da Glasnost (transparência), na então União Soviética (URSS), foi peça fundamental para o termo da Guerra Fria.
Enquanto isso, Clinton, acabado de chegar à Casa Branca (1993-2001), pôs fim ao boicote diplomático, reconheceu o Governo angolano e decretou ruptura com a UNITA.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, foi seguramente reflexo dos ventos da mudança vindos da ex-URSS por obra do então homem forte e último líder soviético (1988-1991).
Revolucionou profundamente a conjuntura internacional, colocando-se na origem da abertura democrática de sociedades historicamente monopartidárias, como Angola.
Com Gorbatchov, dizem alguns especialistas, a então URSS começou a pôr fim ao seu envolvimento em guerras civis, no Terceiro Mundo, e teria influenciado a África do Sul e outros entes externos a afastar-se paulatinamente do conflito angolano.
O primeiro passo concreto nesse sentido teria sido dado, em 1988, quando Angola, Cuba e África do Sul assinaram, em 22 de Dezembro, os Acordos de Nova Iorque, que permitiram a retirada de tropas cubanas e sul-africanas de Angola.
Apadrinhados pelos EUA, esses mesmos Acordos também assumem o “parto” do processo que conduziu à independência da Namíbia, menos de dois anos depois, a 21 de Março de 1990, seguida de eleições gerais supervisionadas pela ONU.
Quanto a Bill Clinton, o reconhecimento diplomático das autoridades angolanas pela maior potência mundial, após quase duas décadas de boicote, foi determinante para o fim do conflito interno.
Numa decisão inesperada, esta dupla medida fechou um ciclo de longos anos de apoio incondicional dos Estados Unidos à UNITA, liderada por Jonas Savimbi, em Angola.
As sucessivas administrações americanas davam à UNITA tudo o que esta precisava para a sua manutenção nos domínios financeiro, político e diplomático.
Dados estimam que até 1989, Savimbi tenha recebido entre 50 e 60 milhões de dólares, anualmente, em assistência secreta; tinha acesso directo à Casa Branca e apoio político de 250 dos 435 congressistas (deputados) da Câmara de Representantes dos EUA.
Entretanto, noutra vertente, Clinton censurou a UNITA por retomar a guerra, depois de rejeitar os resultados eleitorais e abandonar o processo democrático, que sempre apresentou como a meta final da sua luta.
Logo, se a abertura democrática universal inspirada pela reunificação da Alemanha encorajou o prosseguimento de negociações directas entre o Governo e a UNITA, a orfandade desta última na reviravolta de Washington foi fatal.
Beco sem saída
Dito de outro modo, com o fim da protecção da UNITA pelos Estados Unidos, após o desaparecimento da Guerra Fria - que tinha Angola como um dos seus palcos privilegiados - começa a contagem regressiva para o fim da guerra.
Não tardou, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou resoluções punitivas contra a UNITA, entre 1993 e 1998, incluindo sanções económicas e diplomáticas, bem como embargo de armas, estas últimas essenciais para a luta de Savimbi.
Foi uma viragem inédita, uma vez que, antes de Clinton, era impensável fazer passar no Conselho de Segurança da ONU qualquer resolução condenatória contra a UNITA.
O veto americano era invariavelmente automático, sempre que o assunto fosse decidir contra a UNITA de Jonas Savimbi, independentemente da matéria ou da abordagem.
Mas, desta vez, a UNITA foi condenada por unanimidade dos 15 membros do Conselho de Segurança, acusada de violações reiteradas dos Acordos de Paz e das resoluções da ONU, tendo como consequência imediata o congelamento sistemático dos seus recursos financeiros, o fecho das suas representações no exterior e a proibição de viagens.
Os seus “diplomatas” ficaram sem espaço de manobra, no estrangeiro, e impedidos de fazer quaisquer negócios lícitos com outras nacionalidades, incluindo comprar combustíveis, armas, munições, viaturas e peças sobressalentes, entre outros apertos.
Como medidas aprovadas por unanimidade e para cumprimento obrigatório, em todos os Estados-membros da ONU, todos os países começam a executá-las rigorosamente, nos seus territórios, deixando a UNITA cada vez mais frágil.
Esta situação mutilou seriamente a máquina de guerra do movimento do “Galo Negro”, tornando irreversível a sua capitulação. Perante o cerco das forças governamentais, já reorganizadas e rearmadas, com a retomada, em pouco tempo, de bastiões como Andulo e Bailundo, o fim da insurreição armada estava desenhado.
A sua hierarquia político-militar ficou encurralada algures, no leste do país, até que chegou o ponto culminante da luta da guerrilha, com o anúncio da morte em combate do líder histórico da UNITA, Jonas Savimbi, a 22 de Fevereiro de 2002.