Luanda – Com a sua aprovação, depois de reapreciado, o novo Código Penal Angolano (CPA), que havia sido aprovado, inicialmente, em Janeiro de 2019, tem quase tudo para ser a melhor prenda de aniversário para Angola, nestes seus 45 anos de independência.
(Por Frederico Issuzo, editor da ANGOP)
Primeiro Código Penal “made in Angola”, esta nova lei representa a maior produção legislativa infra-constitucional do pós-independência, pelo seu peso na manutenção do equilíbrio social e na protecção da vida e de outros bens jurídicos essenciais à salvaguarda do Estado.
Não é por acaso que a sua discussão despoletou um movimento inédito de manifestações populares, para influenciar o sentido de uma norma legal, nomeadamente a referente à autorização ou não do aborto.
Tem também o mérito de ter suscitado, pela primeira vez, em Angola, o veto presidencial para obrigar o Parlamento a reapreciar o diploma, em virtude de o Chefe de Estado ter entendido que certas condutas graves na gestão da “coisa pública” tinham uma proposta de punição excessivamente branda.
Mais precisamente, o Presidente João Lourenço exigiu sanções mais severas dos crimes "cometidos no exercício ou em prejuízo de funções públicas", bem como os ambientais e contra a propriedade.
A ideia, segundo o estadista, é transmitir "uma mensagem clara" do compromisso do Estado angolano com a promoção da probidade pública, moralização, prevenção e combate à corrupção e à impunidade.
Na sua reacção às inquietações do chefe de Estado, os legisladores aumentaram as penas dos crimes em causa com destaque para o de peculato, cujo castigo máximo sobe de sete para 14 anos de prisão, embora continue abaixo dos 16 anos de cadeia previstos na lei anterior.
Para além disso, um Código Penal inteiramente angolano constitui, seguramente, um novo marco histórico no processo legislativo nacional, depois da reforma constitucional de 1991, que ditou a ruptura com o regime de partido único.
A sua aprovação, que simboliza a emancipação da política criminal angolana, já era há muito esperada e passou a imperativo constitucional com a chegada da Constituição de 2010 (CRA).
Na verdade, a substituição da legislação colonial, em geral, tem sido o grande “calcanhar de Aquiles” da Angola independente.
Hoje, 45 anos depois da independência nacional, boa parte do acervo legal em vigor no país é ainda da era colonial, ressalvadas algumas excepções pontuais, sobretudo nas especialidades mais directamente ligadas à actividade empresarial e económica.
Por exemplo, o Código Comercial de 28 de Junho de 1888 também ainda não foi revogado, mas o grosso do tráfego empresarial é hoje regulado pela nova Lei das Sociedades Comerciais, de 13 de Fevereiro de 2004, que na prática o substituiu.
No domínio fiscal, por seu turno, a Pauta Aduaneira colonial foi revogada, em 2008, enquanto o Código Geral Tributário de 1968 conseguiu “sobreviver” até 2014, quando foi substituído por um novo.
Na altura, argumentou-se que, não obstante as diversas alterações introduzidas, aquele diploma “já não se ajustava à realidade política, económica e social do país”, necessitando de “uma profunda revisão” para o compatibilizar com a CRA.
É uma constatação que, de resto, vem corroborar a ideia de que, por mais consolidadas que sejam, as leis não tendem a permanecer imutáveis de forma perpétua, uma vez que carecerão sempre da sua adaptação a novas realidades e com certa regularidade.
Mas a realidade para grande parte das normas é completamente diferente, com leis há muito ultrapassadas no tempo e no espaço a regerem a vida de uma sociedade globalizada e dinâmica.
Até os nomes de algumas províncias do país continuam à espera da substituição da norma colonial que impõe o uso de “C” e “U” no lugar de “K” e “W”, tal como em Cuando Cubango, Cuanza-Sul e outros.
Também no domínio do Registo Civil, o país tarda a ter uma nova lista onomástica para pôr fim ao que muitos chamam de “complicação” que os cidadãos enfrentam na hora de atribuir nomes aos seus filhos, em face de uma espécie de arbítrio de alguns funcionários na imposição de nomes.
Oficialmente, neste quadro, um dos argumentos utilizados para justificar esta inércia tem sido “a reduzida capacidade da Administração Pública”, sem, no entanto, especificar-se a natureza dessa insuficiência, se humana ou financeira, num país com excesso de quase tudo.
A primeira manifestação de vontade política para alterar o quadro só surge, em 2009, com a criação da primeira Comissão de Reforma da Justiça e do Direito (CRJD), cujo trabalho produziu finalmente o novo Código Penal “de raiz”.
E a entrada em vigor deste instrumento legal significará o fim da vigência, não só em Angola, como também em toda a África lusófona, de uma política criminal arcaica herdada do colonialismo, através de uma lei editada, há mais de 100 anos.
Angola é, até agora, a única ex-colónia lusitana que ainda utiliza este livro conhecido como o Código Penal Português de 1886 (CPP), que já foi comum a toda a lusofonia africana, pelo menos até recentemente.
A Guiné-Bissau foi a primeira das cinco antigas colónias portuguesas, em África, a livrar-se dele, com a aprovação do seu próprio Código, em 1993, seguindo-se Cabo Verde (2003), São Tomé e Príncipe (2012) e Moçambique (2014).
O argumento foi invariavelmente o mesmo: necessidade de modernização da Justiça penal diante da caducidade ou desactualização do texto herdado do colonizador, “que já não corresponde à técnica jurídico-criminal hodierna”.
O que muda com o novo Código
Entre as suas várias inovações, o novo texto introduz a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, puníveis com as penas de admoestação, multa ou dissolução.
Para as pessoas singulares, estabelece a possibilidade de a prisão ser cumprida somente aos fins de semana, em caso de penas não superiores a cinco meses e não substituíveis por multa, e desde que haja “anuência do condenado”.
Ou seja, contrariamente à lei vigente, o CPA já incorpora os progressos da ciência do Direito Penal e procura responder aos ditames da política criminal moderna que aconselha os Estados a colocar o Homem no centro da sua regulação.
De um texto virado para a proteção da dignidade religiosa da monarquia portuguesa, passou-se para uma arrumação subordinada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade da vida.
O CPP dedica os dois primeiros capítulos da sua parte especial à proteção da “Religião do Reino”, com a punição de crimes como “injúria e ofensa contra ministro da religião” ou, ainda, “abuso de funções religiosas”, entre outros, relegando para o fim a matéria relativa às pessoas.
Os dois capítulos seguintes estão reservados aos crimes contra a ordem e tranquilidade pública, prevendo sanções contra “reuniões ilegais”, “injúrias contra as autoridades públicas”, “embriaguez e rompimento de selos”, “resistência”, “coação contra empregado público”, “desobediência” e “tirada de presos”, entre outros.
Já o CPA abre com os crimes contra as pessoas, destacando os cometidos contra a vida, a integridade física e psíquica, a liberdade sexual, a dignidade e a honra, com punição severa para o homicídio, a ofensa, a escravidão e outros.
Apresenta de forma detalhada o crime de interrupção de gravidez e amplia as modalidades dos ilícitos sexuais, que deixam de se limitar à violação e ao estupro, como acontecia no CPP, para abarcar o assédio, a fraude e a importunação sexuais, bem como a pornografia infantil.
A fraude seria o aproveitamento do erro de outra pessoa ou da sua indução em erro sobre a sua identidade pessoal, para fins sexuais, e a importunação a prática de actos de exibicionismo ou propostas explícitas de teor sexual.
O novo texto introduz ainda os crimes de “abandono de pessoas”, “contágio de doença transmissível”, “recusa de assistência por profissional de saúde” e “discriminação”, bem como os crimes informáticos e o de “atentado à liberdade de imprensa”.
Este último sanciona aqueles que impedirem ilegalmente ou perturbarem a emissão de conteúdos jornalísticos em publicações periódicas ou programas de radiotelevisão, ou ainda apreenderem ou danificarem material necessário ao exercício da actividade jornalística.
Ou seja, a inclusão dos chamados “crimes novos” ligados aos efeitos da globalização e outros, assim como absorção e revogação da pletora (excesso) de leis avulsas produzidas ao longo dos últimos anos são outras vantagens da nova codificação.
O documento abandona a confusa designação de “penas de prisão maior”, “penas de prisão” ou “penas correcionais”, para falar somente em “penas de prisão” e fixa o castigo máximo em 25 anos contra os actuais 24, limitando a agravação aos 30 anos.
Excepção à tolerância da lei colonial
Em sentido inverso ao dos outros ramos da ciência jurídica, o Direito da Família notabilizou-se como pioneiro da reforma do direito colonial, com mudanças radicais adoptadas logo nos primórdios da independência.
A Concordata, o pacto com a Santa Sé, que agora regressa ao ordenamento jurídico angolano, foi uma das primeiras “vítimas” deste “divórcio”, com uma vasta alteração da legislação colonial, em questões fundamentais como casamento, filiação e sucessão.
Tudo começou com a Lei 53/76, publicada em 2 de Julho de 1976, que afastou a aplicação das normas da Concordata, permitindo a dissolução dos casamentos católicos, e autorizou a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio, entre outros.
Celebrada entre Portugal e a Santa Sé, em Maio de 1940, e em vigor nas colónias seis anos mais tarde, a Concordata impunha a validade do casamento canónico e proibia o divórcio.
Em Abril de 1977, um outro diploma (Lei 10/77) equiparou os direitos e deveres de todos os filhos em relação a seus pais, proibiu qualquer referência à qualidade de filho legítimo ou ilegítimo e estabeleceu normas sobre a composição do nome e do registo civil dos cidadãos.
Com a Lei 11/85, de 28 de Outubro, os casamentos canónicos deixaram formalmente de ter validade, ficando esta unicamente reservada aos matrimónios celebrados perante os órgãos do registo civil.
A necessidade de se integrar num só diploma este conjunto de normas levou à elaboração de um Código da Família (CF), baseado em novos princípios, orientados para a criação de novas regras de conduta que exercessem “uma influência determinante no meio social”.
Submetido à consulta popular em todo o país, o novo Código foi promulgado, a 27 de Outubro de 1987, e publicado, em 20 de Fevereiro de 1988, através da Lei 1/88, revogando a totalidade do Livro IV do actual Código Civil, que regulava toda a matéria relativa às relações familiares.
Nessa altura, Angola era ainda um país com limitadíssimos especialistas da área do Direito e certamente com muito menos recursos financeiros se comparados com os dias de hoje.
Entre as principais inovações, o Código equipara o casamento à união de facto reconhecida, atribuindo a esta os mesmos efeitos jurídicos que aquele, e aboliu o regime da comunhão geral de bens dos cônjuges, deixando apenas a separação e a comunhão de adquiridos.
Estabelece uma especial obrigação do Estado de protecção à família, a igualdade do homem e da mulher em todas as relações jurídico-familiares e o reforço da obrigatoriedade de prestar alimentos.
No entender da professora Maria do Carmo Medina, as novas normas contidas no Código da Família tornam urgente a necessidade de alterar outros ramos do Direito, sobretudo no domínio das sucessões.
A especialista cita o exemplo das normas do Direito das Sucessões, que, no seu entendimento, “carecem de ser adaptadas” à nova visão, designadamente da unidade do conceito de filiação, da adopção como forma de parentesco e dos direitos sucessórios na união de facto, entre outros.
E, com o recuo registado recentemente em relação ao casamento canónico, marcado pelo regresso à Concordata, o Estado angolano obriga-se, inexoravelmente, a fazer mudanças significativas à lei, em geral, para acolher esta nova realidade e outros casos inadiáveis.
Nos termos do documento assinado em meados de 2019, para ser ratificado antes de entrar em vigor, Angola volta a reconhecer os efeitos civis ao matrimónio canónico, mas exige que o seu assento seja transcrito nos devidos registos do estado civil.
Em razão do valor espiritual, moral e educativo do matrimónio canónico, diz o tratado, o Estado angolano “reconhece-lhe uma importância particular na edificação da família no seio das nações”.
O ministro celebrante do casamento deve ter nacionalidade angolana ou, se for estrangeiro, ter a autorização de residência, em Angola, diz o novo Acordo-Quadro de cooperação entre Angola e a Santa Sé.
O reconhecimento dos efeitos civis aos casamentos celebrados por todas as Igrejas legais, em Angola, faz parte das propostas existentes para uma nova e mais ampla revisão do Código da Família, que, aparentemente, acabou por encalhar com a morte da professora Medina, sua principal promotora.
A “revolução” da Constituição de 2010
As aspirações à construção de uma sociedade socialista, transportadas da luta de libertação nacional, começaram a desvanecer-se ainda na fase embrionária, após a declaração da independência, a 11 de Novembro de 1975.
Em Março de 1991, o país é forçado a uma profunda alteração constitucional que põe definitivamente fim ao sonho socialista e abre a via para a democracia pluripartidária, na antecâmara da assinatura dos Acordos de Paz de Bicesse (Portugal), de 31 de Maio desse ano.
É a segunda modificação à Lei Constitucional (LC) de 1975, que fundou o novo Estado nascente, depois da primeira ocorrida apenas três anos após a independência, em 1978.
Esta última visou formalizar a opção pela via do socialismo e a transformação do MPLA em partido marxista-leninista (MPLA-PT), com o papel dirigente do Estado angolano.
Mas, antes disso, adopta-se uma lei ordinária (3/76) que estabelece a chamada “economia de resistência”, no quadro das nacionalizações então em curso, com vista a criar um sector económico estatal forte como condição “sine qua non” para a almejada construção da sociedade socialista.
As nacionalizações serviriam, assim, para mobilizar os meios financeiros para industrializar o país, através da canalização dos “recursos anteriormente apropriados pelos exploradores ou aplicados em consumos parasitários e agora postos ao serviço da revolução”. Mas, não tardou, os resultados das políticas adoptadas revelam-se catastróficos, no plano económico.
Com um sector público ineficiente e improdutivo, o país prostra-se perante graves desequilíbrios e distorções económicas, que conduziram ao crescimento do mercado paralelo.
A necessidade de fazer face às tensões daí resultantes leva à aprovação de um pacote legislativo que cria, em 1988, o chamado Saneamento Económico e Financeiro (SEF), um programa supostamente concebido para corrigir a situação.
Porém, todas as leis elaboradas para dar suporte a este programa, nitidamente avesso ao modelo socialista, com destaque para a Lei 10/88 (das Privatizações) e a Lei 13/88 (dos Investimentos Estrangeiros), são aprovadas sem uma prévia revisão da Constituição económica de 1978.
Com o espírito e a letra da lei magna lesados, pôs-se em causa o regime económico então vigente. Mas, mesmo assim, as novas leis acabam por prevalecer como sendo “plenamente válidas”.
O pensamento dominante, na altura, recusa-se a admitir a sua inconstitucionalidade com o argumento de que se tratava de uma ampla “abertura material” da Constituição de 1978, então classificada como fazendo parte do tipo de “constituições flexíveis dotadas de grande mobilidade”.
Esta visão viria, contudo, a ser desqualificada, anos mais tarde, considerando-se aquelas leis inconstitucionais, por terem “neutralizado”, de certa forma, a ideologia de vários preceitos constitucionais e normas programáticas.
Nesta nova visão, a inconstitucionalidade daquelas leis consistiu na “flexibilização” do sistema socialista então vigente, através da atenuação da intervenção do Estado na economia e de um maior impulso à iniciativa privada.
Dito de outro modo, não se teve em conta as garantias fornecidas pelas transformações anteriormente operadas no sistema económico, tais como em matéria de nacionalizações, ao permitir a privatização de bens de domínio público e consolidar a economia mista.
Mas, em 1992, uma nova revisão constitucional, que veio consolidar as mudanças iniciadas em 1991, acaba por proibir as nacionalizações e eliminar as referências à sociedade socialista.
Ao invés, é abolida a pena de morte e consagra-se o princípio do sufrágio universal, directo, igual, secreto e periódico para a eleição do Presidente da República, pelo sistema maioritário de duas voltas, e os deputados, pelo sistema de volta única.
É, ainda, reforçado o reconhecimento e as garantias dos direitos e liberdades fundamentais, com base nos tratados internacionais sobre os direitos humanos, principalmente a Declaração Universal de 1940, das Nações Unidas.
Estavam, assim, criadas as premissas para a implementação da democracia multipartidária e o lançamento das bases para a instauração da economia de mercado.
Como corolário, o país conhece as primeiras eleições gerais (presidenciais e legislativas), em Setembro de 1992.
A instabilidade político-militar que se seguiu às primeiras eleições multipartidárias manteve o país sem novas disputas eleitorais até 2008, quando se realiza a segunda renovação dos deputados à Assembleia Nacional.
Dois anos depois, e na perspectiva das novas eleições então programadas para 2012, é aprovada a Constituição da República de Angola (CRA), com 244 artigos, contra os 166 do texto anterior, saído da revisão de 1992.
Na sua reacção aos traumas do conflito pós-eleitoral de 1992 e num espírito de reconciliação nacional, foram amnistiados todos os crimes militares, os crimes contra a segurança do Estado e outros afins e os cometidos por militares e agentes de segurança e ordem interna.
O seu derradeiro artigo, consagrado a esta matéria (244º), precisa que a amnistia abrange ainda todos os crimes praticados pelos militares e agentes da ordem, “sob qualquer forma de participação, no âmbito do conflito político-militar, terminado em 2002”.
Elogiada por uns como mais moderna e garantística, mas condenada por outros como um recuo e antidemocrática, a nova lei magna revolucionou profundamente o sistema eleitoral do país e a forma de exercício do poder político.
Eliminou a eleição directa do Presidente da República pelos cidadãos, no sistema maioritário de duas voltas, e optou pelo sufrágio indirecto, através das listas partidárias, sem obrigatoriedade de maioria absoluta, ganhando assim o epíteto de “Constituição atípica”.
Suprimiu o cargo de primeiro-ministro, criou o de vice-presidente da República e autorizou a institucionalização das autarquias, estas condicionadas à conclusão do seu pacote eleitoral e ao evoluir da pandemia da Covid-19.
Em relação às autarquias, este processo deve obedecer ao princípio do gradualismo, e o Estado determina “a oportunidade da sua criação, o alargamento gradual das suas atribuições, o doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade (…)”.
A nova lei fundamental passou a reconhecer a validade e a força jurídica do costume, bem como o papel e as funções do poder tradicional constituído em conformidade com o direito consuetudinário e que não contraria a Constituição.
O poder político deixou de ser exercido de forma colectiva ou colegial pelo Governo, através do Conselho Ministros, e passou a ter um único titular, na pessoa do Presidente da República, que também exerce a iniciativa legislativa e pode fazer leis mediante autorização do Parlamento.
Ou seja, o Governo desaparece enquanto órgão de soberania, e os seus integrantes, entre ministros e secretários de Estado, passam a ser, juntamente com o vice-presidente da República, auxiliares do titular do poder Executivo, a quem são transferidos os poderes de decisão antes atribuídos ao Conselho de Ministros.
Como resultado, os decretos deste último órgão com força de lei são substituídos por “decretos presidenciais”, forçando assim a revisão de toda a legislação ordinária, para substituir a expressão “Conselho de Ministros” por “Titular do Poder Executivo” e outras adaptações.
Vários constitucionalistas apontam zonas cinzentas no actual texto constitucional, como a concentração “excessiva” de poderes numa única pessoa e a anulação da eleição directa do presidente da República, pelo que aconselham a revisão da Constituição.
Também o sistema de imunidades consagrado no texto tem tido interpretações desencontradas, em que se confunde presidente em exercício com ex-presidente da República, às vezes atribuindo-se a este último os privilégios reservados àquele, como os cinco anos de desresponsabilização criminal.
Na letra e no espírito da CRA, porém, este período de suspensão do procedimento criminal parece ser apenas invocável para o presidente da República em funções e para os “crimes estranhos ao exercício das suas funções”, e nunca para os que já se encontram fora do cargo.
Quer dizer, terminadas as suas funções, o antigo titular do poder executivo e o vice-presidente passam a ter o mesmo tratamento que um deputado, deslocando-se do regime de imunidades do artigo 127º para o do 150º da CRA, sendo, por isso, vulneráveis à acção penal.
Antes da actual da Assembleia Nacional, saída das eleições de 1992, o primeiro órgão legislativo, em Angola, foi institucionalizado, em 1980, sob a designação de Assembleia do Povo.
Mas a primeira Lei Constitucional que “deu à luz” o novo Estado independente foi aprovada pelo Comité Central (CC) do MPLA, em 10 de Novembro de 1975, para entrar em vigor às 00:00 horas do dia seguinte, 11 de Novembro.
Ela estipulou, no seu artigo 35º, que, enquanto não estivessem preenchidas as condições para a instituição da Assembleia do Povo, o órgão supremo do poder do Estado era o Conselho da Revolução.
Todavia, o CC era nesse intervalo o único órgão competente para alterar a Constituição, cabendo ao Conselho da Revolução a função legislativa ordinária, incluindo a aprovação do Orçamento Geral do Estado e do Plano Económico elaborado pelo Governo, entre outras tarefas.
Era presidido pelo Presidente da República e integrado pelos membros do Bureau Político do MPLA, pelos membros do Estado-Maior General das FAPLA e do Governo designados para o efeito pelo partido e pelos comissários provinciais, entre outras entidades.
Os enigmas da Lei da Amnistia
Angola testemunhou, a 12 de Agosto de 2016, a aprovação da sua mais recente Lei da Amnistia (Lei 11/16), que continua, entretanto, a revelar-se como um autêntico "enigma", quatro anos depois.
Trata-se de um diploma legal elaborado com urgência, pelo Governo do então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, com o fundamento inicial de responder a um imperativo nacional inadiável para a tutela de um interesse público concreto.
Esta Lei surgiu alguns meses depois do indulto presidencial de 11 de Novembro de 2015, com um preâmbulo lacônico e vago, que parece denunciar, desde logo, os seus traços "enigmáticos".
É certo que, normalmente, qualquer Lei nova traz sempre a motivação no seu preâmbulo, ou seja, a parte introdutória, que explica a sua razão de ser e os objectivos que com ela se pretende alcançar. Mas, no caso da Lei 11/16, esta motivação não aparece clarificada.
O argumento expressamente assumido alude à necessidade de todos os cidadãos se reverem nos festejos da independência nacional, sem excluir os presos, dando a estes "novas oportunidades (…) de reintegração pessoal e familiar".
Apesar de o texto falar, de forma particular, na inclusão dos reclusos, em geral, a amnistia trazida por este diploma é direccionada a fracções bem delimitadas de beneficiários.
Aprovado para anular todos os crimes comuns e militares cometidos desde a independência nacional, em 1975, até 11 de Novembro de 2015, contempla apenas crimes com penas de até 12 anos de cadeia.
Desta feita, ficaram de fora os "crimes violentos" e de natureza sexual e auxílio ou promoção da imigração ilegal, assim como os de índole militar, cometidos com dolo e violência ou arma de fogo.
Também os crimes de tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como os de tráfico de pessoas e órgãos de seres humanos ficaram excluídos da amnistia.
Para as infrações perdoadas foi, todavia, mantida a responsabilidade civil, nos crimes patrimoniais, com o prazo de um ano para os beneficiários repararem os danos causados.
Os defensores da iniciativa viam nela uma vontade clara para "desafogar as prisões sobrelotadas" e os tribunais "inundados de processos-crime, mas sem capacidade de resposta, tendo em conta o respeito pela dignidade humana".
Outros ainda descobriram nela um "acto de magnanimidade" do seu proponente, "um gesto de valorização da pessoa (humana), independentemente da sua conduta social".
Do lado oposto, dizia-se que a verdadeira intenção foi garantir a impunidade futura dos que "delapidaram o erário", aqueles que "transformaram Angola num dos países mais corruptos do Mundo, com uma gestão danosa dos seus recursos".
Para tanto, tal intento estaria fundado na convicção de estar protegido pelo artigo 62.º da Constituição da República de Angola (CRA), que considera "válidos e irreversíveis" os efeitos jurídicos dos actos de amnistia, não podendo estes serem revogados.
Mas a realidade mostra, hoje, que nenhum dos dois campos conseguiu acertar plenamente no alvo.
Depois da concretização do perdão, dirigido a cerca de oito mil reclusos, as cadeias do país continuam a queixar-se de superlotação e os tribunais de excessiva pressão.
Enquanto isso, sobreviveram à amnistia crimes como o peculato e o branqueamento de capitais, que são as principais ocorrências do fenómeno da gestão danosa dos recursos públicos.
Ou seja, descobre-se, agora, que a amnistia não foi capaz de “desafogar” as prisões nem os tribunais, muito menos de impedir a responsabilização criminal daqueles que “saquearam o país”.
Pelo contrário, criou um potencial conflito com a Constituição, ao ressuscitar alguns dos crimes militares já amnistiados por esta.
Em 2010, a CRA amnistiou todos os crimes militares, sem excepção, com a única delimitação deferida ao “âmbito do conflito político-militar, terminado em 2002”.
E, seis anos depois, uma lei inferior vem sobrepor uma nova amnistia acima dos mesmos crimes militares em geral, excluindo outros, em especial, até os que foram apagados pela CRA.
É caso para se questionar, afinal, o que se pretendeu realmente com a aprovação apressada de uma lei de tão pouca ou mesmo nenhuma utilidade?
E, se for verdadeira a tese da protecção da impunidade, o que terá falhado ou faltado para que os destinatários se vissem livres de qualquer importunação jurídica para responder em juízo?
O exemplo mais recente dessa desprotecção veio da própria Assembleia Nacional, que acaba de levantar as imunidades de um membro seu para que este possa sentar-se no banco dos réus.
Trata-se do deputado Manuel António Rabelais, que perde, assim, a sua imunidade parlamentar, para responder criminalmente por ter, alegadamente, comparticipado no espetacular assalto ao tesouro nacional, enquanto responsável governamental.
Há quem acredite que a montanha acabou por “parir um rato”, por causa de alguma distracção técnica por parte dos especialistas incumbidos da redacção da nova Lei da Amnistia.
Há ainda os que defendem a tese de uma cilada deliberadamente montada por tais técnicos contra o proponente do referido diploma legal, o então titular do poder executivo.
Entretanto, se as duas teorias não podem ser todas verdadeiras ao mesmo tempo, elas, ainda que aparentemente “ridículas”, conduzem à mesma conclusão.
Quer dizer, a confirmar-se que houve uma intenção deliberada de blindar a impunidade dos autores da dissipação do erário, estaremos perante um acto de traição à pátria.
E, nos termos da Constituição (art.127º), o crime de traição à pátria não admite qualquer tipo de imunidade e leva à instauração imediata de procedimento criminal.
Por outro lado, esta postura fere as limitações impostas por normas internacionais aplicáveis directamente no ordenamento jurídico angolano, por força da CRA (artigos 13.º, 26.º e 27.º).
Segundo estas disposições, os tratados e acordos internacionais regularmente aprovados ou ratificados “vigoram na ordem jurídica angolana após a sua publicação oficial e entrada em vigor (…)”.
Imunidades dos deputados
Contrariamente ao entendimento geral, todo o tipo de imunidades, sem excepção, visa sempre garantir a liberdade profissional do beneficiário, no sentido de poder exercer livremente a sua função e não para livremente abusar dela.
Longe de proteger impunidades, todas as imunidades são sempre concebidas no interesse do Estado e nunca no interesse pessoal.
O objectivo único é assegurar que os beneficiários realizem, com segurança, o interesse público subjacente à sua função ou profissão, ficando, desde já, advertidos de que esta protecção desaparece fora do exercício das suas funções.
No caso dos deputados, a sua imunidade, enquanto garantia funcional historicamente estabelecida, visa proteger a sua liberdade no Parlamento, permitindo-lhes discutir, votar e criticar livremente sem medo de represálias externas.
Por isso mesmo, a CRA determina, no seu artigo 150.º, que eles não podem ser responsabilizados “pelos votos ou opiniões que emitam em reuniões, comissões ou grupos de trabalho da Assembleia Nacional, no exercício das suas funções ”.
Por inerência desse privilégio, também não podem os deputados ser detidos ou presos sem autorização da Assembleia Nacional.
Só que esta proibição também sofre uma limitação explícita, no sentido de que, em determinadas circunstâncias específicas, eles têm, perante a lei, o mesmo tratamento que o cidadão comum.
O mesmo artigo 150.° da CRA ressalva que os deputados podem, sim, ser detidos, se forem apanhados em flagrante delito, “por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos”.
Diz-se flagrante delito quando a pessoa é apanhada a cometer o crime, ou quando acaba de cometer, encontrada no local do crime ou fora dele, mas acompanhada de objectos ou indícios do crime, com ou sem perseguição.
Fora dessas circunstâncias, os deputados não podem ser detidos ou presos, mas podem ser investigados, sempre que haja suspeitas de cometimento de crime, podendo ser ouvidos em interrogatórios, sem necessidade de qualquer tipo de autorização.
Por outras palavras, a imunidade não impede a instauração de um processo-crime contra um deputado, exigindo apenas que, uma vez terminada a investigação criminal e confirmada a acusação, ela seja levantada antes do início do julgamento.
Foi o que aconteceu com Rabelais, um antigo ministro da Comunicação Social, situação que poderá vir, também, suceder com outros deputados e quaisquer outros titulares de imunidade.
Novos ventos para normas internacionais
Depois de longos anos de uma incompreensível indiferença, Angola parece ter entrado numa era de “reconciliação” com os tratados internacionais já assinados ou por assinar.
Os três últimos anos foram marcados por mudança de postura, com o país a revelar-se mais “acolhedor” dos instrumentos do Direito Internacional e do multilateralismo.
Convenções internacionais, durante muitos anos engavetadas, mesmo depois da sua assinatura, começaram, finalmente, a ser ratificadas e postas a vigorar no ordenamento jurídico interno.
Num ápice, foram ratificados vários tratados internacionais, incluindo a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes.
A aceitação deste documento, aprovado, em 1984, pela Assembleia Geral da ONU, da qual Angola faz parte, tem a grande vantagem de atrair enorme apoio internacional para reformas cruciais em sectores relevantes de um dado país.
Fortalece a ideia de Estado de Direito e a administração da Justiça, facilita a efectiva aplicação da lei e proporciona uma segura administração dos locais de detenção.
Estes aspectos, no seu conjunto, ajudam a promover, igualmente, a estabilidade, o investimento económico e os chamados Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
A Convenção obriga e orienta os Estados, através de um processo de aprimoramento sobre a efectiva proibição, prevenção e punição da tortura e bem como a reparação para as vítimas.
Na mesma ocasião, foram ainda ratificadas a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e o Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos relativos à Abolição da Pena de Morte.
O Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, relativo à Protecção das Vítimas dos Conflitos Armados não-internacionais, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia são os outros instrumentos internacionais ratificados.
Com este passo, Angola deu, certamente, um sinal positivo do cumprimento dos seus compromissos internacionais, como Estado-membro de vários organismos da ONU e também Estado-Parte de pactos internacionais.
São os casos, por exemplo, dos pactos internacionais sobre os direitos civis e políticos, os direitos económicos, sociais e culturais, a eliminação de todas as formas de discriminação contra mulher e os direitos da criança e das pessoas com deficiência.
Bem vistas as coisas, entre a nova opção e o anterior paradigma de isolamento e política da “cadeira vazia”, a escolha não podia ser diferente, numa altura em que a cooperação internacional é essencial para o êxito do programa de recuperação de activos, em curso no país, no quadro do combate à corrupção e à impunidade.