Luanda – O mundo inteiro conheceu, ultimamente, um crescimento notável do movimento de contestação contra a chamada violência estadual, corporizada pela ‘brutalidade policial’, na sua forma mais visível, durante as manifestações.
Por Frederico Issuzo, jornalista da ANGOP
De há um tempo a esta parte, os activistas dos direitos humanos têm lançado iniciativas em vários países, incluindo Angola, que vão desde campanhas de sensibilização a intervenções ou interpelações contra a repressão das manifestações de rua.
Em concreto, pedem o fim do uso, pelos Estados, da “força excessiva, desproporcional e letal” contra os seus cidadãos no exercício da liberdade de expressão e de reunião.
Petições com esse teor já foram endereçadas até a países como França e Estados Unidos, principais referências democráticas mundiais, e, mais recentemente, a nações africanas como Senegal, Quénia, Angola, entre outras.
No caso de Angola, tais interpelações são lideradas pela Amnistia Internacional Portugal (AIP), a partir de Lisboa, sendo que a última petição data de 11 deste mês.
Nas suas reacções, os Estados visados têm, invariavelmente, reclamado contra o que consideram “abordagem redutora” dos activistas dos direitos humanos, que fecham os olhos ao paradoxo da natureza extremamente violenta das “manifestações pacíficas”.
Os mesmos Estados alertam que, ao fazer “tábua-rasa” aos contornos violentos de algumas manifestações, ignorando os impactos económicos dos estragos daí resultantes, tais iniciativas encorajam ainda o aproveitamento dos protestos de rua como pretexto para as habituais práticas criminosas que acabam nos tribunais.
Denunciam comportamentos de manifestantes que, nalguns casos, são os primeiros a atacar as forças da ordem e outros intervenientes, incluindo jornalistas, dando, por isso, respaldo ao uso da contestada força policial excessiva.
Segundo esta narrativa, há manifestantes que abusam do seu direito à manifestação, para prejudicar ou sacrificar direitos alheios, inclusive o próprio direito à vida e o direito de propriedade, resultando na morte de inocentes e na destruição ou pilhagem de bens públicos e privados.
Questiona-se, por isso, a honestidade intelectual daqueles que celebram como actos heróicos tragédias ou episódios em que, a pretexto de se homenagear uma vida ou exigir um direito, se atenta contra outras vidas e se destrói, deliberadamente, todo um património colectivo ou particular.
Indaga-se, ainda, se se pode falar de “manifestação pacífica”, quando os seus protagonistas incendeiam bens móveis e imóveis, destroem escolas, saqueiam lojas, assaltam bancos e orquestram planos de assassinato contra figuras administrativas ou outras.
Se, por um lado, se nega que a força policial excessiva se justifique, entende-se, por outro, que o direito à liberdade de expressão e de reunião não autoriza a vandalização de bens públicos e privados, cuja factura final recai sobre os ombros dos contribuintes na hora de reparar os danos causados pelos manifestantes.
Acresce-se a isso o facto de que tais facturas, quase sempre milionárias, incidem sobre danos desnecessária e ilicitamente causados na esfera jurídica até de pessoas sem vínculo directo ou indirecto com o Estado.
Noutra vertente, são ainda estabelecidas analogias com casos de autêntica justiça privada ou por mãos próprias, a título de vingança, quando se sabe, como em Paris, por exemplo, que o polícia autor do disparo que esteve na origem da manifestação já estava competentemente detido.
Na antítese desta argumentação, desfilam, porém, as mais variadas teorias da conspiração que privilegiam o benefício da dúvida para a tese da infiltração das manifestações pelos próprios Estados com agentes deliberadamente preparados para provocar distúrbios.
Para alguns analistas, a opção entre admitir ou refutar pura e simplesmente uma tal eventualidade também tem os seus riscos, a julgar pela dificuldade de se vislumbrarem os possíveis ganhos que tais Estados obteriam com tamanha irresponsabilidade, que acaba onerando os seus cofres.
Mas, na percepção dos seus simpatizantes, a tese da conspiração assenta no medo generalizado que os Estados teriam de ver a sua autoridade desafiada pela rua, com o risco de degenerar em ameaça real ao poder palaciano.
É, de resto, uma hipótese tendencialmente remota, pelo menos em sociedades avançadas, porquanto as críticas dos activistas dos direitos humanos não se limitam aos países sem tradição democrática consolidada, mas também, sobretudo, às grandes democracias.
França diz “basta”
País-berço da Declaração Universal dos Direitos do Homem, França está entre as potências europeias mais pressionadas pela ‘rua’, nos últimos anos, encontrando-se, por isso, no centro das atenções na luta contra a crueldade policial.
Sem dúvida, a Nação de Molière destaca-se entre os casos mais recentes que chocaram a humanidade, pela intensidade da intervenção policial e pela dimensão dos danos e gravidade dos crimes provocados pelos ataques dos manifestantes.
O último episódio de violência urbana no país data de finais de Junho de 2023, quando a morte de um adolescente, por um polícia de Paris, se transformou numa tragédia nacional, resultante do confronto entre as forças da ordem e ‘manifestantes pacíficos’.
O desfecho foi tão catastrófico e sem precedentes que o Governo francês quase confessou ter atingido o “limite” da sua paciência, quando prometeu que não iria mais tolerar que as coisas continuassem como estavam.
Com a advertência, o Executivo do Presidente Emmanuel Macron deixou antever uma revisão profunda das regras de actuação do Estado em situações do género.
Três mortos, milhares de pessoas detidas e um número elevado de estabelecimentos comerciais, agências bancárias, bem como edifícios públicos e privados incendiados, destruídos ou pilhados foi o resultado da tragédia cujos danos patrimoniais rondam os mil milhões de euros.
Os números apontam para mais de 12 mil viaturas incendiadas, perto de 400 agências bancárias e mil e 600 estabelecimentos comerciais degradados, saqueados ou completamente destruídos, 269 esquadras de Polícia assaltadas, 263 escolas deterioradas, entre outros prejuízos.
Para as autoridades francesas, ficou provado que houve uma “instrumentalização” da morte condenável de um jovem adolescente para executar agendas estranhas ao conceito de “manifestação pacífica” e ao seu derivante direito à liberdade de expressão e manifestação.
Mais precisamente, explicam, a morte do jovem Nahell Merzouk, de 17 anos, foi “um pretexto para um explodir de ódio e violência absolutamente imperdoável”, pondo em causa “a adesão aos valores republicanos, com ataques aos símbolos da República (…), que ao Estado incumbe defender”.
Para o Estado francês, o aproveitamento criminoso dos protestos em causa ficou comprovado com os processos-crime julgados em tribunais competentes, na sequência das detenções feitas durante a sublevação, pela prática de vários crimes, incluindo tentativa de homicídio.
Com efeito, 480 do total de três mil 625 manifestantes detidos foram julgados, dos quais 380 condenados a penas de prisão, enquanto outros aguardam pelo julgamento.
Antes dos acontecimentos de Junho de 2023, França já estava na mira dos organismos de defesa dos direitos humanos das Nações Unidas e do Conselho Europeu, que a acusam de nada fazer para conter a brutalidade policial, sobretudo durante os protestos violentos anteriores.
A 17 de Novembro de 2018, eclodiu no país o que viria a ser conhecido como ‘Movimento dos Coletes Amarelos’, uma manifestação de protesto contra o custo de vida e pela redução de impostos sobre os combustíveis.
Muito cedo, o movimento de protesto converteu-se numa autêntica insurreição, mobilizando mais de três milhões de pessoas em todo o país, com estradas bloqueadas, incêndios, tumultos e saques à mistura, obrigando a uma intervenção musculada da Polícia.
Terminou, em Março de 2019, antes de o país enfrentar, quatro anos mais tarde, uma nova onda de violências quase que com as mesmas características, mas, desta vez, para protestar contra a reforma do sistema de segurança social que aumenta de 62 para 64 anos a idade de reforma.
Desde então, o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Comissão do Conselho Europeu para os Direitos Humanos (CCEDH) têm mantido pressão sobre o Governo francês, para garantir o exercício efectivo da liberdade de manifestação.
Os dois organismos entendem ser uma obrigação do Estado proteger os manifestantes e os jornalistas contra a violência policial e contra “os indivíduos violentos que actuam dentro ou à margem dos cortejos”.
Consideram que os actos de violência “esporádicos” de alguns manifestantes ou outros actos repreensíveis cometidos por outras pessoas durante a manifestação “não podem justificar o uso excessivo da força pelos agentes do Estado”, muito menos bastam “para privar os manifestantes pacíficos de gozarem do direito à liberdade de reunião”.
Na sua resposta, Paris justificou o recurso à força pelas condições “particularmente difíceis” de manutenção da ordem que obrigam ao uso de “todos os meios de força intermédia”, capazes de permitir “uma distância que garanta um máximo de segurança, tanto para as forças da ordem, quanto para as pessoas que as enfrentam”.
Segundo as autoridades francesas, em momento algum se utilizam os Lançadores de Balas de Defesa (LBD) contra os manifestantes, “se esses não cometerem actos de violência física, nomeadamente contra as forças da ordem”.
Dito por outras palavras, os polícias franceses só fazem recurso aos LBD “quando se revele necessário dissuadir ou travar uma pessoa violenta ou perigosa”, situações em que o enquadramento legal aplicável deixa de ser o das manifestações e passa para o de “ajuntamentos”.
Foram manifestações marcadas por “actos de violência graves” cometidos por alguns manifestantes contra as forças da ordem, os jornalistas presentes no local e outras pessoas, disse o Governo francês na sua resposta de 21 páginas enviada ao Conselho Europeu.
O documento explica ainda que, nestes casos, “já não se trata mais de manifestantes, mas de participantes em ajuntamento violento e ilegal”, agravado pela constatação de pronunciamentos, inscrições ou agressões de carácter racista, anti-semita ou homófobo durante a mobilização.
Angola e outros casos africanos
Angola, a par do Senegal e do Quénia, registou os casos mais recentes de manifestações violentas que abalaram o continente africano, com motivações diversas, deixando para trás vítimas humanas e avultados danos materiais.
O último incidente com gravidade no país deu-se também em Junho passado, na província do Huambo, quando dezenas de moto-taxistas saíram à rua para protestar contra o aumento dos preços da gasolina.
O episódio ocorreu cerca de 18 meses depois de outro cenário de violência urbana, surgido a 10 de Janeiro de 2022, em Luanda, num movimento inicialmente convocado como greve de taxistas, que resultou em actos de vandalismo e pilhagens.
À semelhança da abordagem adoptada por Paris, as autoridades em Luanda afirmam, em sua defesa, que o recurso à força nas manifestações “só acontece nas situações de perturbação da ordem pública mediante a violação de outros direitos fundamentais”.
Em outras palavras, o ponto de partida comum tem sido o princípio de que as forças de defesa e segurança têm a obrigação legal de repor a ordem pública, em caso da sua perturbação, no cumprimento do seu dever geral de “proteger as pessoas, os seus bens e o Estado de Direito e Democrático”.
Os mesmos argumentos podem ser encontrados no Senegal, uma das maiores referências da democracia africana, onde o Governo prefere, antes, taxar os últimos acontecimentos no país como “actos de banditismo”, do que lhes reconhecer a natureza de “manifestações pacíficas”.
A Polícia senegalesa defrontou, em Junho último, manifestantes que protestavam contra a condenação judicial do líder da oposição, Ousmane Sonko, por ‘práticas criminosas’ em pleno período pré-eleitoral.
O balanço final foi de 16 mortos contabilizados em três dias e mais de 400 feridos entre os manifestantes, 36 entre as forças da ordem e avultados danos materiais com a queima ou destruição de viaturas e edifícios, bem como pilhagem de lojas e outros locais, nas cidades mais atingidas.
Com mais de 500 detenções, o episódio descrito como o mais violento das últimas décadas, no país, esteve mais concentrado na capital, Dakar, e na cidade de Ziguinchor, sede do Sul, fronteiriça com a Guiné-Bissau.
Por seu turno, o Quénia perdeu sete pessoas num único dia, enquanto 312 indivíduos, incluindo um deputado, foram detidos durante manifestações de rua, em várias cidades do país, quando protestavam contra novos impostos.
Os protestos, inicialmente ‘pacíficos’, degeneraram em confrontos violentos resultantes do arremesso de pedras, pelos manifestantes, contra as forças da ordem, que ripostaram com gás lacrimogéneo e balas reais.
As autoridades quenianas declararam que as 312 pessoas detidas, inclusive um deputado, vão responder em juízo por indícios de cometimento de “vários crimes, porque planearam, orquestraram ou financiaram, directa ou indirectamente, “protestos violentos e actos de ilegalidade”.
Diante de todas estas evidências, fica claro que os chamados ‘excessos’ das forças de defesa e segurança de Angola, apontados pela Amnistia Internacional Portugal, não são, propriamente, uma realidade exclusiva dos angolanos e têm, regra geral, como motivação a reposição da ordem e da legalidade.
Angola é um Estado Democrático e de Direito que respeita o direito de manifestação e reunião, consagrado na Constituição, desde que sejam pacíficas, ordeiras e não violem, em circunstância alguma, direitos de terceiros. IZ