Angola relembra Acordos de Bicesse 

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  • Luanda • Segunda, 30 Maio de 2022 | 08h12
Antigo Presidente José Eduardo dos Santos (esq), ex-Primeiro Ministro de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, e fundador da UNITA, Jonas Savimbi
Antigo Presidente José Eduardo dos Santos (esq), ex-Primeiro Ministro de Portugal, Aníbal Cavaco Silva, e fundador da UNITA, Jonas Savimbi
Arquivo/Angop

Luanda - A 31 de Maio de 1991, ante um cenário de conflito armado, o povo angolano recebeu de bom grado a notícia da assinatura dos Acordos de Bicesse, que impulsionaram a implementação do sistema democrático multipartidário e lançaram as bases para a realização das primeiras eleições gerais no país. 

Por Francisca Augusto 

Assinados na cidade de Estoril (Portugal), os Acordos de Bicesse constituíram um marco importante para a transição política do país, apesar de ter sido efémero e não ter evitado o recrudescer da guerra. 

A assinatura desses acordos foi antecedida de várias rondas de negociações, entre Abril de 1990 e Maio de 1991. 

No essencial, os Acordos de Bicesse rubricados pelo antigo Presidente da República, José Eduardo dos Santos, e pelo então líder da UNITA, Jonas Savimbi, visavam o fim da guerra em Angola, a implementação do sistema multipartidário, impulsionando a democracia e a realização de eleições livres e justas. 

O texto determinava, entre outros pontos importantes, um cessar-fogo entre as forças militares do Governo e da UNITA monitorado pela Comissão Conjunta Político-Militar (CCPM), constituída por representantes das duas partes em conflito, pela mediação (ONU) e pelos observadores (EUA, Portugal e Rússia). 

Estabelecia o período de 1 de Setembro a 1 de Outubro de 1992, para a realização de eleições presidenciais e legislativas, findas as quais cessariam os poderes da CCPM. 

Ainda no quadro dos Acordos, os Estados Unidos da América (EUA) e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS - hoje Federação da Rússia), comprometeram-se a cortar o abastecimento de armas às partes envolvidas no conflito. 

Era, na prática, a segunda tentativa, depois dos fracassados Acordos de Alvor (Portugal - 1974) e de Gbadolite (antigo Zaire - 1989), de os angolanos encontrarem soluções duradouras para o fim da guerra que Angola vivia desde a proclamação da Independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975. 

Dada a complexidade do processo e visando credibilizar aquele importante acto político, diplomático e jurídico, a assinatura dos Acordos teve a mediação de Portugal, na pessoa de Durão Barroso, seu antigo Secretário de Estado dos Assuntos Externos e da Cooperação. Coube aos EUA e à antiga URSS o papel de observadores. 

No âmbito da assinatura dos Acordos de Bicesse, Angola e os angolanos viram nascer a sua segunda Lei Constitucional, que garantia a transição do país para a economia de mercado. 

O documento criava as condições para a instauração do regime multipartidário, assim como alargava os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, entre os quais os direitos políticos. 

Com a assinatura daqueles instrumentos jurídicos, parecia terem ficado para trás, em definitivo, 16 anos de confronto militar entre as forças do Governo e da UNITA, abrindo-se uma nova página na história do país. 

Angola e o mundo viam surgir um ambiente de festa e pacificação entre filhos da mesma Pátria, divididos por convicções políticas e ideológicas resultantes da guerra fria, que tinham nestes acordos a esperança de verem silenciar as armas e avançaram no multipartidarismo. 

A realização das primeiras eleições multipartidárias e presidenciais, que deveriam ocorrer entre 15 e 18 meses a contar da data da assinatura dos acordos, sob coordenação do então Conselho Nacional Eleitoral (CNE), era um dos pontos-chave de todo o processo. 

No âmbito do exercício das suas funções, o recém-criado CNE começou com o processo de registo eleitoral em todo o país, supervisionado pela UNAVEM II, também responsável pela supervisão, organização da votação e pela contagem dos boletins de voto. 

A realização das eleições, nos dias 29 e 30 de Setembro de 1992, ficou marcada pela grande adesão dos eleitores, em praticamente todo o país, tendo sido consideradas livres e justas pelas Nações Unidas, na pessoa do representante especial do secretário-geral da ONU, Margaret Anstee, pelos observadores, em particular, e pela comunidade internacional, em geral. 

Com esse passo, o país teve a possibilidade de encarar o futuro com optimismo e confiança, sonhos que se desfizeram rapidamente depois da realização do sufrágio. Contra todas as expectativas, a festa da democracia daria lugar a uma nova onda de confrontos armados. 

Depois de conhecidos os resultados eleitorais, Angola entrou numa nova espiral de violência, que muitos analistas consideram ter sido a mais destruidora desde o começo do conflito. 

Todavia, apesar de os Acordos de Bicesse não terem cumprido, na íntegra, o seu papel, foram um dos “atalhos” que permitiram aos angolanos chegar à paz definitiva, em 2002. 

O Estado moderno angolano 

O historiador angolano Patrício Batsikama considera que esses acordos propiciaram o nascimento da República de Angola, em substituição da então República Popular de Angola, e a criação de um ambiente jurídico-político propício para albergar o Estado moderno angolano. 

“Os Acordos de Bicesse foram o pontapé de saída para a economia de mercado e, sobretudo, para a globalização económica”, comenta o especialista. 

De acordo com Patrício Batsikama, por ocasião da assinatura dos acordos Angola era considerada como um mercado “virgem e apetitoso” para todo o mundo. 

“Para mim, os Acordos de Bicesse lembram as novas configurações políticas em Angola, que conduziram às primeiras eleições e à abertura económica e cultural do país, invadido por novas culturas, novas economias, pelo novo social, entre outros”, sublinha. 

Por sua vez, o historiador Bruno Kambundo reconhece que o 31 de Maio é um marco na história contemporânea de Angola, porque representa um dos passos iniciais das tentativas de resolução da guerra, no período pós Gbadolite, e por facilitar a democratização do país. 

Na opinião desse especialista, a importância histórica desta data prende-se, fundamentalmente, com o facto de ter trazido à arena política angolana novos actores políticos, além de ter sido nela onde se criaram as condições para a realização das primeiras eleições. 

Diferente dos Acordos de Alvor, que conduziram à proclamação da independência nacional, e do efémero Acordo de Gbadolite, os Acordos de Bicesse surgem com a missão de colmatar as lacunas e falhas dos anteriores e marcar, definitivamente, o selo de paz. 

Todavia, apesar da euforia dos angolanos, os frutos dos Acordos de Bicesse foram de curta duração, ou seja, apenas um ano, seguindo, na prática, a mesma lógica da Conferência de Gbadolite. 

Em Gbadolite (1989) foi produzida uma declaração que previa um cessar-fogo entre as partes, testemunhada por 17 Chefes de Estados e de Governos. Com esse passo, ficou quase generalizada a ideia de que a guerra em Angola tinha os dias contados. 

Foi com o deseja e a responsabilidade de fazer melhor que os actores políticos e militares, sob mediação estrangeira, partiram para a materialização dos Acordos de Bicesse, antecedidos por reuniões técnicas entre delegações do Governo angolano e da UNITA, em Fevereiro de 1991. 

Esses contactos bilaterais preliminares tiveram a participação dos observadores, mas não foram conclusivos. O impasse foi resolvido com a adopção e assinatura de um documento, sob supervisão dos observadores, que serviu de base para a ronda negocial seguinte. 

Estudos apontam que no mês de Abril, em Bicesse, decorreu a última ronda de negociações em torno do documento, com a participação de José Eduardo dos Santos (Angola), Jonas Savimbi (Angola), Quett Masire (Botswana), Pierre Buyoya (Burundi), Aristides Pereira (Cabo Verde) e Hissene Habre (Tchad). 

Estiveram também presentes um representante da então Organização de Unidade Africana (OUA), os presidentes João Bernardo Vieira (Guiné-Bissau), Denis Sassou-Nguesso (Congo), Omar Bongo (Gabão), Moussa Traoré (Mali) e Joaquim Chissano (Moçambique). 

Completam a lista Ibrahim Bambagida (Nigéria), Manuel Pinto da Costa (São Tomé e Príncipe), Mobutu Sese-Seko (ex-Zaire), Kenneth Kaunda (Zâmbia), Robert Mugabe (Zimbabwe) e Ali Hassan Mwinyi (Tanzânia). 

Dos "pontos fortes" das negociações ressaltam-se os entendimentos registados em relação à necessidade de cessar-fogo, a consagração do multipartidarismo, a formação de um exército único, a retirada total de todas as tropas internacionalistas cubanas de Angola (até 1 de Julho do mesmo ano) e a criação de condições para a realização das primeiras eleições presidenciais e legislativas. 

No quadro do acordo, as partes concordaram em estabelecer uma nova missão de manutenção de paz em Angola, a UNAVEM II, responsável por fiscalizar as acções a desenvolver pelos intervenientes do processo. 

Os acordos previam o enquadramento das tropas das FAPLA e das FALA nas Forças Armadas Angolanas (FAA) e a desmobilização das forças excedentárias de ambas as partes, além da restauração da administração do Estado nas áreas controladas pela UNITA. 

Tratava-se de um passo crucial para o fim da guerra em Angola e para a abertura do país aos fundamentos democráticos. 

Se, por um lado, os angolanos foram às urnas, como estipulava os Acordos de Bicesse, ressalta-se, por outro, que, apesar dos acordos rubricados, a paz nunca chegou a ser efectiva no país, o que levou, outra vez, as partes em conflito à mesa de negociações em 1994, primeiro, no Namibe, seguindo-se Addis Abeba (Eitópia), Abidjan (Côte d'Ivoire), Lusaka (Zâmbia - Protocolo de Lusaka) Luena (Moxico - Memorando de Entendimento Complementar ao Protocolo de Lusaka). 

Os Acordos de Bicesse têm o mérito de marcar o começo de um novo regime político, multipartidário, que se consolida diariamente em Angola, e da mudança de sistema económico, marcado pela economia de mercado. 

Esses dois aspectos podem ser, além da realização das eleições de 1992, os pontos melhor conseguidos com os Acordos de Bicesse, um marco que ficará na mente dos angolanos, sobretudo, pela importância na estratégia de solução do conflito armado. 

O conflito armado em Angola terminou, definitivamente, em 2002, depois da morte em combate do então líder da UNITA, Jonas Savimbi, o que abriu portas para a fase inicial do processo de reconstrução nacional e de desenvolvimento do país. 

Com o estabelecimento da paz, Angola tem vindo a reerguer-se das cinzas e a dar os passos para a reconstrução, com a reabilitação de estradas, caminhos-de-ferro e instituições públicas, além de criar condições favoráveis para a melhoria do ambiente de negócios. 



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