Cabul - O vice-presidente deposto do Afeganistão, Amrullah Saleh, declarou-se, terça-feira, presidente legítimo do país, devido à fuga do ex-chefe de Estado no domingo, e prometeu não se submeter aos talibãs.
O antigo chefe dos espiões do país, inimigo dos islamistas que domingo tomaram o poder em Cabul, retirou-se para a última região ainda não controlada pelos talibãs: o Vale Panchir, a nordeste da capital.
"Segundo a Constituição afegã, em caso de ausência, fuga, demissão ou morte do Presidente, o primeiro vice-presidente torna-se o presidente em exercício. Estou actualmente no meu país e sou o Presidente em exercício legítimo. Apelo a todos os líderes para apoio e consenso", escreveu, terça-feira, Amrullah Saleh na sua conta do Twitter.
"Não vou decepcionar os milhões de pessoas que me ouviram. Nunca estarei sob o mesmo tecto que os talibãs", escreveu no domingo, pouco antes de se esconder.
No dia seguinte, foram publicadas nas redes sociais imagens de Amrullah Saleh e Ahmad Massoud, o filho do famoso comandante Ahmed Shah Massoud, assassinado em 2001 pela Al-Qaeda, no Vale do Panchir, à beira do maciço do Hindu Kush.
Ahmad Massoud anunciou na segunda-feira, num artigo publicado pela revista francesa La Règle du Jeu (A Regra do Jogo), que tencionava resistir aos talibãs, dizendo que queria fazer "sua" a luta do seu pai, um herói da resistência contra a ocupação soviética, pela liberdade.
Os dois homens parecem estar a lançar as bases do que seria uma rebelião contra o novo regime, uma vez que homens armados começaram a reagrupar-se em Panchir.
O vale, de difícil acesso, nunca caiu nas mãospa dos talibãs durante a guerra civil dos anos 1990, nem uma década antes para os soviéticos.
"Não permitiremos que os talibãs entrem em Panchir e resistiremos com todas as nossas forças", disse à AFP um residente da zona, que preferiu manter o anonimato.
Para Saleh, nativo da região de Panchir, esta seria apenas a última de uma sucessão de batalhas contra os talibãs.
Órfão de tenra idade, o agora ex-vice-presidente lutou ao lado do Comandante Massoud nos anos 1990. Depois serviu no seu governo, antes de os talibãs o derrubarem, tomando Cabul em 1996 e instalando um regime fundamentalista, que durou até que os norte-americanos os expulsaram do poder em 2001.
Amrullah Saleh disse na altura que os talibãs torturaram a sua irmã numa tentativa de o tirar do esconderijo.
"A minha opinião sobre os talibãs mudou para sempre, devido ao que aconteceu em 1996", escreveu o ex-vice-Presidente, no ano passado, num editorial da revista Time.
Após os ataques de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, dois dias após o assassinato do Comandante Massoud, Saleh tornou-se uma importante fonte de informação para a CIA.
Isto levou-o, após a queda dos Talibãs, a tornar-se chefe da Direcção Nacional de Segurança (NDS), o serviço secreto afegão, entre 2004 e 2010
Nesta posição, criou uma vasta rede de informadores e espiões entre os talibãs, mas também no Paquistão, onde a maioria dos seus líderes estão baseados.
Isto permitiu-lhe reunir provas de que os insurgentes continuavam a receber apoio do exército paquistanês, o que este negou.
A sua ascensão à vice-presidência, contudo, não foi isenta de alguns contratempos. Em 2010, foi demitido do seu posto de chefe da NDS após um ataque humilhante numa conferência de paz em Cabul.
Fora da política durante alguns anos, liderou a acusação contra os talibãs e o Paquistão nas redes sociais, atacando-os em tweets quase diários.
Em 2018, foi, durante alguns meses, ministro do Interior, após selar uma aliança com o Presidente, Ashraf Ghani, que fugiu do Afeganistão no domingo.
Tornou-se então vice-presidente, após as eleições presidenciais de 2019. Saleh escapou a vários ataques talibãs, mais recentemente em Setembro de 2020, quando uma carroça-bomba explodiu à passagem da caravana em que viajava, matando pelo menos 10 pessoas.
Horas depois, reapareceu num vídeo, com a mão esquerda coberta de ligaduras, jurando ripostar. "Vamos continuar a nossa luta", afirmou.
Os talibãs conquistaram Cabul no domingo, culminando uma ofensiva iniciada em Maio, quando começou a retirada das forças militares norte-americanas e da OTAN.
As forças internacionais estavam no país desde 2001, no âmbito da ofensiva liderada pelos Estados Unidos contra o regime extremista (1996-2001), que acolhia no seu território o líder da Al-Qaida, Osama bin Laden, principal responsável pelos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001.
A tomada da capital põe fim a uma presença militar estrangeira de 20 anos no Afeganistão, dos Estados Unidos e dos seus aliados na OTAN, incluindo Portugal.
Face à brutalidade e interpretação radical do Islão que marcou o anterior regime, os talibãs têm assegurado aos afegãos que a "vida, propriedade e honra" vão ser respeitadas e que as mulheres poderão estudar e trabalhar.