Das mesquitas aos dólares, Mártires perde identidade 

     Infográficos           
  • Luanda     Domingo, 10 Setembro De 2023    07h56  
Um ângulo da rua 15, Mártires do Kifangondo.
Um ângulo da rua 15, Mártires do Kifangondo.
Tarcísio Vilela - ANGOP

Luanda – Conhecido pelo seu frenético movimento diário, desde manhã até à noite, o Mártires do Kifangondo caracteriza-se, actualmente, como um bairro quase sem identidade, ofuscado por um comércio informal, que esconde negócios misteriosos.

Por Moisés da Silva, jornalista da ANGOP

Localizado nos arredores do Centro da Cidade de Luanda, o Mártires é uma circunscrição pequena e urbanizada, com aproximadamente 90 anos de existência, em que se pode ver de tudo um pouco, desde o fervilhar da fé religiosa até ao comércio próspero e ilegal.

À primeira vista, parece um bairro completamente normal, habitado por moradores comuns, mas por trás das suas moradias, dos muros, das caixilharias e chapas existe um conjunto de actividades e falcatruas, típicas das grandes cidades do crime.

São, regra geral, actividades ilícitas realizadas aos olhos de todos, que se consolidam com o tempo, apesar das acções esporádicas das autoridades municipais e da província de Luanda, quer administrativas quer policiais e ou até judiciais.

O cenário desolador é visto por todas as ruas, tomadas por diferentes negócios, inclusive em portas de casas e quintais, além dos passeios, invadidos por roulotes e fogareiros de pinchos. Como se não bastasse, as estradas estão transformadas em “casas de câmbio”.

Aliado a tudo isso, está a proliferação de restaurantes, bares e casas nocturnas, que tornam o bairro madrugador e promíscuo, com relatos de prostituição e tráfico de drogas. Grande parte das suas moradias está reconfigurada como empreendimentos.

Conforme dados de 2014, além dos quintais, onde se vende almoços, no Mártires existem 360 estabelecimentos comerciais (incluindo mini-mercados), salões de beleza, barbearias, armazéns e boutiques. Pela zona, crescem ainda lojas diversas, cantinas, padarias e farmácias.

Muitos destes empreendimentos não estão licenciados e são espaços arrendados por estrangeiros, vindos da Guiné Conacry, do Mali, Burkina Faso, do Tchade, da Gâmbia, da Eritreia, da Líbia, da República Centro Africana, da RDC, de Portugal e Cuba.

De acordo com o presidente da Comissão de Moradores, António Cunha “Chuba”, o Mártires caracteriza-se, actualmente, como um bairro comercial, onde coabitam indivíduos de várias nacionalidades e no qual se vende de tudo um pouco e em qualquer esquina.

“Os pequenos negócios são praticamente todos exercidos por estrangeiros, incluindo a troca de dinheiro, alimentada por pessoas bem posicionadas no Estado, por empresários anónimos e pessoas com influência”, denunciou a fonte à ANGOP.

Na verdade, o Mártires é um dos bairros da província de Luanda com mais diversidade de nacionalidades africanas, albergando cerca de dois mil cidadãos, provenientes, na sua maioria, da região da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental).

Actos ilícitos e prostituição

De acordo com António Cunha “Chuba”, no Mártires existe “muito dólar escondido em casas bem identificadas”, apesar do facto de, nos termos da Lei Cambial de Angola, o exercício do comércio de câmbio depende de autorização especial do Banco Nacional de Angola (BNA).

“Aqui, a troca de moeda é feita, principalmente, nas ruas 13, 14 e 15, onde os chamados kínguilos ficam bem expostos. Há muito Kwanza, Dólar e Euro escondido neste bairro, e a gente vê nas operações conjuntas esporádicas”, reportou o também morador da zona, há mais de 50 anos.

Entretanto, tal como a venda desordenada pelas artérias, o tráfico de drogas é outro mal que mancha a imagem do bairro, considerado como porta de “passagem obrigatória” de produtos ilícitos que entram em Angola pelo Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro.

“O Mártires também é um bairro onde acontece muito tráfico de drogas, desde cannabis (liamba) a pesadas. É necessário um serviço de inteligência, para se pôr fim a estas práticas”, expressou, revelando que já houve flagrantes e acções de desmantelamento.

Na calada da noite vigoram, essencialmente, as farras em casas nocturnas e a prostituição, protagonizada, regra geral, por cidadãs angolanas e congolesas democratas, em troca de valores irrisórios (abaixo de cinco mil kwanzas), bebidas ou mesmo prato de comida.

Trata-se de um negócio que envolve até menores de 18 anos de idade, e, por vezes, acompanhadas de crianças. Segundo António Cunha, há relato de envolvimento de alguns agentes da Polícia Nacional, que “caçam” as moças na chamada “Praceta”.

“Devido às denúncias, hoje o negócio anda mais discreto”, referiu o líder daquela comunidade, alertando que as denominações religiosas espalhadas pelo bairro também propiciam vários crimes e tráfico entre angolanos e expatriados, e muitos constrangimentos.  

A propósito, à ANGOP tentou contactar a Polícia Nacional mais sem sucesso.

Igrejas e poluição sonora

Além da venda ilegal de moeda estrangeira, o surgimento de diferentes confissões religiosas é outra preocupação de toda a comunidade, por estarem a promover desordem e barulho, sobretudo no período nocturno e à madrugada, altura em que a vizinhança pretende descansar.

A situação é causada, normalmente, por igrejas evangélicas e as mesquitas, por via dos cultos e de vigílias. Muitas vezes, tais devoções ocorrem quase em simultâneo e, além do cruzamento de barulhos, os próprios fiéis também embaraçam o trânsito automóvel.

“Já reportamos a situação e o aborrecimento dos moradores à Administração do Distrito, mas até agora não vimos qualquer reacção. O sensato seria proibir-se os cultos à noite e evitar-se o surgimento de novas igrejas, particularmente mesquitas”, comentou.

Este quase secular bairro de Luanda tem, actualmente, 25 templos, dentre os quais dois da Igreja Católica e cinco da religião islâmica (Mesquitas).

A ANGOP apurou que em breve poderá ganhar um sexto templo, especificamente para quem professa o alcorão, na rua 15, a mais movimentada e agitada da circunscrição. Ainda assim, segundo dados disponíveis, detém a maior mesquita do país, na Rua 8.

“Temos cinco mesquitas. Não tenho nada contra, mas deveriam arranjar períodos específicos para os cultos. Das 25 denominações, os católicos são a maioria, e depois os evangélicos. Nem todas estão legais. E do que eu saiba, as religiões islâmicas não tem autorização legal”, reafirmou.

O líder comunitário fez saber que as igrejas Católica, Testemunhas de Jeová e a Islâmica têm estruturas próprias, enquanto as demais funcionam em espaços  arrendados e não dimensionados para a realização de cultos, visto que as paredes não são apropriadas para amparar barulho.

Apesar de a Constituição da República de Angola não proibir a liberdade de culto, considerou necessário o cumprimento de algumas normas e a mão pesada dos fiscais, por não ser possível numa rua existirem três igrejas separadas por menos de 50 metros.

Na opinião deste morador, a distância ideal seria de 500 metros, pelo menos, uma vez que a maior parte das igrejas localiza-se em ruas sem parques de estacionamento, realiza vigílias com frequência e utiliza instrumentos sonoros com volume bastante alto.

“Os munícipes queixam-se dos constrangimentos que as igrejas criam. Muitos estão a abandonar inclusive as suas casas, o que significa que, do ponto de vista administrativo, alguma coisa não está bem. Não é possível uma igreja funcionar em residência”, lamenta.

Administração defende-se

Em reacção das ocorrências registadas diariamente, o administrador do Distrito Urbano da Maianga, José de Oliveira, refere que “a venda desordenada é um câncer na província de Luanda”, mas já está a ser combatida.

Para o efeito, explica, foi criada uma equipa multissectorial liderada pelo governador provincial de Luanda, Manuel Homem, que trabalha no reordenamento das vendas na capital do país, em particular na Avenida Cónego Manuel das Neves e no bairro São Paulo, bem como nas avenidas Ngola Kiluanje e Hojy Ya Henda (Cazenga).

A nível da Maianga, o processo já decorre no mercado da Teixeira, no Cassequel, prevendo-se que ocorra também no bairro Mártires.

Quanto ao câmbio e/ou venda ilegal de moeda estrangeira, sobretudo dólares, nas ruas do Mártires de Kifangondo, José de Oliveira diz ser crime, porém um caso de polícia e não da Administração. Ainda assim, afirma que vão continuar a colaborar com as entidades afins para se banir esse mal.

Informa, por outro lado, que a Administração da Maianga tem um plano conjunto com a Polícia de Ordem Pública, o SIC e outros sectores das forças de defesa e segurança para acabar com todos os actos criminais.

Devido a persistência do fenómeno no Mártires, José de Oliveira entende que, por muitos serem reincidentes, além da sensibilização, deve-se agravar as penas, para desincentivar o câmbio ilegal.

Quanto à prostituição, o administrador argumenta que se trata de uma das profissões mais antigas do mundo, mas ilegal em Angola. “Reconheço que existe e vamos continuar a trabalhar para a combater”.

Em relação à delinquência, o gestor público afirma que, tendo em conta os relatórios diários e semanais da Polícia Nacional, o Mártires é “calmo, com os níveis de criminalidade baixos e controlados”.

Relativamente às transgressões administrativas, revela que, durante o seu mandato de cerca de dois anos e oito meses, o número de “roulotes” e bancadas por cima dos passeios reduziu substancialmente.

“Entretanto, notamos ainda algumas transgressões, mas com os dias contados, uma vez que as pessoas estão a ser dirigidas para locais apropriados para vendas, no âmbito do processo de reorganização do comércio ilegal na Maianga e em toda a cidade de Luanda”, adianta.      

Sobre o crescimento de infra-estruturas e seitas religiosas, o administrador do Distrito Urbano da Maianga lamenta e manifesta preocupação, mas atribui parte da culpa aos próprios moradores que arrendam as moradias para essa finalidade, sem o consentimento das autoridades.

Para evitar a poluição sonora e o surgimento de mais templos, o administrador adianta que estão a trabalhar com as comissões de moradores para o aumento das denúncias, quer na administração, quer nas esquadras ou comandos policiais quando for de noite.

Origem e particularidades do bairro

O Mártires do Kifangondo está localizado nos arredores do Centro da Cidade de Luanda. Faz fronteira com as avenidas Ngola Mbandi (a Norte), Revolução de Outubro (a Sul), Ho Chi Minh (a Oeste) e com a Rua Moisés Alves de Pinho (a Este).

Designava-se, nos seus primórdios, Musseque dos Imbondeiros, por se tratar de um perímetro composto por centenas de imbondeiros e cajueiros que formavam uma mata. Hoje, bairro é uma combinação de vivendas e prédios possui cerca de 16 mil habitantes, maioritariamente mulheres.

Naquele período, era habitado por poucas famílias, que tinham a agricultura como o seu meio de subsistência. Com o andar do tempo, apareceram os distintos quartéis e, a partir de 1950, a zona recebeu “novos inquilinos”, militares, que construíram individualmente.

Entre 1960 e 1976, passou a chamar-se Bairro Salazar, em homenagem ao então presidente do Conselho de Estado de Portugal, Oliveira Salazar, uma vez que Angola era uma província desse país. O seu actual nome foi atribuído em 1976, ano à seguir ao da liberdade dos angolanos.

O nome é um tributo à memorável e triunfante Batalha do Kifangondo, pelas Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), o braço armado do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), actual partido no poder em Angola.

Essa batalha, última antes da independência, travou-se a 10 de Dezembro de 1975, perto do Assentamento Estratégico de Kifangondo, em Luanda, e opôs o também já extinto Exército de Libertação Nacional de Angola (ELNA), afecto ao partido Frente de Libertação Nacional de Angola (FNLA).

No quadro de uma requalificação, entre 2010 e 2012, passou a estar totalmente infra-estruturado, com 20 ruas asfaltadas, sete travessas e igual número de becos. E fora as moradias, alberga hotéis de luxo e o Complexo Desportivo do Clube 1º de Agosto.

Como muitas outras localidades da capital do país, conta com certos serviços e equipamentos sociais em funcionamento, mas também carece de outros básicos e indispensáveis, como a iluminação pública e água potável, há cerca de dez anos.

A comunidade ressente-se, de igual modo, da ausência de um hospital público, visto que na circunscrição só existem a Clínica do Exército e nove postos de saúde privados, para perto de quatro mil (4.000) famílias, distribuídas por duas mil e 700 residências.

Para a formação académica, depende de duas escolas primárias públicas, uma outra comparticipada – da Igreja Católica – e um colégio, para uma população estudantil de 2.500 alunos e 50 professores, 15 dos quais a leccionarem na referida instituição privada. Tem também duas creches.

O bairro ocupa um área de 1 milhão 532 metros quadrados, segundo a Carta Cartográfica de Luanda, e tem como morador mais antigo a anciã Maria Fernanda Baptista, de 85 anos de idade (nasceu em 1938). Reside na Rua 13 e poderá ver, em breve, o seu nome imortalizado na Praceta.

Embora misterioso e hoje “invadido” por estrangeiros, o Mártires criou artistas como os falecidos Irmãos Kafala, Dog Murras, Gabriel Tchiema, Virgílio Fire, Legalize, Isidora Campos, Fábio Dance, Raquel da Lomba e os Irmãos Almeidas, além de muitos gestores públicos e desportistas. MDS/VM 



Tags



Fotos em destaque

SODIAM arrecada USD 17 milhões em leilão de diamantes

SODIAM arrecada USD 17 milhões em leilão de diamantes

Sábado, 20 Abril De 2024   12h56

Fazenda colhe mil toneladas de semente de milho melhorada na Huíla

Fazenda colhe mil toneladas de semente de milho melhorada na Huíla

Sábado, 20 Abril De 2024   12h48

Huambo com 591 áreas livres da contaminação de minas

Huambo com 591 áreas livres da contaminação de minas

Sábado, 20 Abril De 2024   12h44

Cunene com 44 monumentos e sítios históricos por classificar

Cunene com 44 monumentos e sítios históricos por classificar

Sábado, 20 Abril De 2024   12h41

Comuna do Terreiro (Cuanza-Norte) conta com orçamento próprio

Comuna do Terreiro (Cuanza-Norte) conta com orçamento próprio

Sábado, 20 Abril De 2024   12h23

Exploração ilegal de madeira Mussivi considerada “muito crítica”

Exploração ilegal de madeira Mussivi considerada “muito crítica”

Sábado, 20 Abril De 2024   12h19

Hospital de Cabinda realiza mais de três mil cirurgias de média e alta complexidade

Hospital de Cabinda realiza mais de três mil cirurgias de média e alta complexidade

Sábado, 20 Abril De 2024   12h16

Camacupa celebra 55 anos focado no desenvolvimento socioeconómico

Camacupa celebra 55 anos focado no desenvolvimento socioeconómico

Sábado, 20 Abril De 2024   12h10

Projecto "MOSAP 3" forma extensionistas para escolas de campo em todo país

Projecto "MOSAP 3" forma extensionistas para escolas de campo em todo país

Sábado, 20 Abril De 2024   12h05

Comunidade do Lifune (Bengo) beneficia de biofiltros

Comunidade do Lifune (Bengo) beneficia de biofiltros

Sábado, 20 Abril De 2024   11h58


+