Luanda - O mercado de conteúdo local no ramo petrolífero conta com pelo menos 200 empresas prestadoras de serviços, registadas e em partilha, e com um universo de 16 mil trabalhadores, anunciou o presidente da Associação das Empresas Prestadoras de Serviço da Indústria Petrolífera Angolana (AECIPA), Bráulio de Brito.
Por Hermenegildo Manuel, jornalista da ANGOP
Em entrevista exclusiva à ANGOP, para abordar o quadro actual do sector, Bráulio de Brito aponta que apenas 177 empresas estão registadas na AECIPA, entre 100% angolanas, de direito angolano e multinacionais.
Conforme o responsável, o mercado tem pelo menos cinco mil trabalhadores estrangeiros dentro do sector de serviços da indústria petrolífera angolana.
Considera necessário o investimento para o empoderamento das empresas nacionais, face ao papel desempenhado no desenvolvimento socioeconómico do país.
No seu entender, maior aposta e robustez financeira poderá ser o “expediente” necessário, para que o conteúdo local tenha sucesso e desempenhe, de facto, o seu papel na economia nacional, apontando para a necessidade de se olhar para a perspectiva da monitoria de implementação do quadro jurídico, permitindo a aplicação efectiva do regime de exclusividade onde for necessário.
Eis a íntegra da entrevista:
ANGOP - Senhor presidente, faz três anos, em Outubro, desde que entrou em vigor o Regime Jurídico sobre o Conteúdo Local. Esse regulamento é cumprido na íntegra?
Bráulio de Brito (BB) - Antes de mais, obrigado pela oportunidade! É sempre um prazer falar para a ANGOP e, acima de tudo, podermos abordar a questão do conteúdo local. É um tema bastante importante, porque tem a ver com o crescimento, desenvolvimento e empoderamento das empresas nacionais, que, consequentemente, têm papel muito importante no desenvolvimento socioeconómico do país.
Relativamente à implementação do Decreto Presidencial n.º 271/20, de 20 de Outubro, devo dizer que se trata de uma estratégia destinada a criar uma base de desenvolvimento, crescimento e controlo do conteúdo local (no país), seja na vertente do desenvolvimento profissional do quadro angolano, seja no desenvolvimento e crescimento tecnológico das empresas nacionais.
Volvidos três anos, diríamos que, em grande medida, a expectativa que se criou à volta da implementação e os objectivos que se definiram, na altura da implementação deste Decreto Presidencial, estão cumpridos.
Com a implementação do referido diploma, foram criados três regimes de prestação de serviços da indústria petrolífera, e hoje esse quadro de diferenciação de serviços permitiu ter uma panorâmica mais clara dos serviços que são efectivamente realizados em Angola por empresas nacionais, por um lado, ou por empresas de direito angolano e estrangeiras, por outro.
Temos um quadro mais claro que nos dá uma projecção de serviços que, num passado recente, não estavam ao nível das empresas angolanas. Hoje, muitos desses serviços já são realizados por empresas angolanas. A grosso modo, a implementação e a avaliação da implementação do Decreto sobre o Conteúdo Local são positivas. Agora, qualquer regulamento, lei ou projecto, ao longo dos tempos, exige ajustes ou correcções, para que vá ao encontro e acompanhe a evolução dos tempos.
Penso que estamos num destes momentos, em que o Decreto Presidencial sobre o Conteúdo Local cumpriu as metas iniciais, mas a dinâmica da indústria petrolífera, do mundo, em geral, e do país, em particular, exige que se faça uma revisão ou melhor enquadramento do que tínhamos estipulado há cerca de três anos.
É um trabalho que nós, AECIPA, estamos a executar internamente, para, a seu devido tempo, partilharmos com os decisores, no caso o Ministério dos Recursos Minerais, Petróleo e Gás (MIREMPET), bem como com a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANPG), a fim de vermos se as nossas intenções vão ao encontro da nova dinâmica da indústria e do mundo, em geral.
ANGOP – O que mudou desde a implementação do diploma à data actual?
BB - Este regime jurídico introduziu três elementos ou três regimes, como chamamos: os regimes de exclusividade, o concorrencial e o preferencial. O primeiro, o de exclusividade, aporta todos os serviços que já podem ser desenvolvidos por empresas nacionais e, como tal, sempre que houver concursos, para serviços identificados pela indústria, só empresas angolanas podem concorrer. Criou-se aqui uma espécie de definição de que os serviços podem ser apenas realizados por empresas nacionais, sem concorrer com empresas de maior porte, multinacionais, por exemplo. Criou-se, também, um regime de preferência que permite que sejam empresas angolanas ou de direito angolano a participar em concursos no sector.
O segundo, o regime concorrencial, permite que sejam empresas estrangeiras a concorrer. Para esse segmento de serviços, que exige tecnologia de ponta, o legislador propõe que deixemos que as empresas de maior porte, no caso internacionais, concorram entre si.
O terceiro ou último, o de preferência, é o regime intermediário, em que temos, por um lado, exclusividade, só empresas nacionais, e, por outro, concorrencial, que permite que empresas de direito angolano ou empresas angolanas possam concorrer. Empresas de direito angolano são empresas registadas em Angola, que podem ou não ter um quadro societário misto, ao passo que empresas exclusivamente angolanas são empresas cujo quadro societário é 100% angolano.
ANGOP – Há necessidade de criação de uma lei específica sobre o conteúdo local?
BB – Não se trata tanto de uma lei. Temos, hoje, um quadro regulatório que vai, em grande medida, ao encontro das exigências e das necessidades do nosso país, em termos de desenvolvimento da indústria petrolífera e do próprio conteúdo local. O que precisamos, na realidade, é criar um quadro de monitoramento da implementação desse quadro jurídico, que permita a aplicação do regime de exclusividade, que é necessário ser aplicado. Os vários processos ou regimes não devem ser contaminados por mecanismos menos transparentes. Por exemplo, podemos ter um concurso em que deveria ser apenas de exclusividade, mas, muitas vezes, constatamos que as empresas angolanas vêm com uma força de trabalho que não é propriamente nacional. Há aí alguma contaminação, por um lado, mas, por outro, e, acima de tudo, o mais importante é que o desenvolvimento do conteúdo local tenha suporte financeiro. Podemos ter um quadro regulatório muito certo, contudo, se não tivermos empresas angolanas com capacidade financeira para crescerem tecnologicamente, para terem os equipamentos necessários para prestar um serviço de excelência, nunca teremos um conteúdo local em forte desenvolvimento. A questão que se coloca não é tanto o quadro regulatório, pois o que temos serve os interesses, embora haja a necessidade de se ter em atenção um mecanismo mais eficiente de controlo. O que está em causa é a capacidade financeira das empresas nacionais. Sem capacidade financeira, não teremos nunca um conteúdo local forte e em crescimento. É bom, entretanto, falar de capacidade financeira, de crescimento financeiro, das empresas nacionais, visto que estamos a constatar a criação de Fundos de Desenvolvimento ou Fundos de Suporte Financeiro para o sector. Por outro lado, constatámos, com agrado, o facto de as agências imobiliárias estarem a providenciar o seu apoio, para que se possa criar uma plataforma financeira muito mais robusta, que é, realmente, essencial, e a base do crescimento do conteúdo local.
ANGOP - É necessária a entrada da banca para financiar empresas que actuam neste sector?
BB – Sim. Num cenário ideal, gostaríamos de ter a banca a complementar os fundos imobiliários. Não podemos trabalhar exclusivamente com um ou com outro. A banca, pelo seu papel e pela sua presença no sector e na economia nacional, deve ser um parceiro. As empresas prestadoras de serviços e os fundos imobiliários também podem ser o complemento dos pacotes financeiros que, eventualmente, um ou outro poderá oferecer. Uma das acções que a AECIPA está a desenvolver é a criação de uma plataforma de comunicação, mecanismo de oportunidade, quer a nível da banca, quer a nível dos fundos mobiliários, a fim de que possamos ter essa introdução de melhoria da capacidade financeira das empresas, de modo que possam ser suficientes e tecnologicamente robustas e, assim, serem competitivas, porque, sem competitividade, não temos serviços com eficiência, o que nos obriga a reverter sempre a efectividade e a eficiência das empresas estrangeiras. As empresas nacionais devem ser mais competitivas e mais eficientes, ter como resultado maior capacidade financeira para se tornarem capazes de concorrer com o mercado e providenciarem o serviço de excelência exigido, não só a nível do sector do petróleo e gás, mas também a nível de qualquer indústria.
ANGOP – E em termos de quadros nacionais, temos capacidades para responder às necessidades do mercado?
BB - Devo dizer, com muita satisfação, que, a nível de quadros na indústria petrolífera e no sector de serviços da indústria petrolífera, não temos problemas. Se olharmos para a indústria no seu todo, veremos que todas as empresas multinacionais (operadoras) têm quadros seniores, de facto, em posições de muita responsabilidade dentro do quadro de direcção dessas instituições. O mesmo se constata nas empresas prestadoras de serviços. Temos hoje, em quase todas, senão todas as empresas prestadoras de serviços, quadros angolanos em posições muito relevantes de direcção e, muitas vezes, não só em Angola, mas também fora do país, bem como noutros escalões operacionais e técnicos. Temos, também, vários quadros angolanos com conhecimentos técnicos, capazes de desenvolver as tarefas e os trabalhos para os quais são chamados. Obviamente, devemos continuar a trabalhar, a desenvolver e a formar os nossos quadros angolanos, para que possamos ter mais uma indústria, bem como uma economia suportada por técnicos angolanos. A título de exemplo, a nível da AECIPA, desenvolvemos o programa ‘Criar’, que promove estágios para jovens recém-licenciados em empresas prestadoras de serviços. O objectivo consiste em criar também uma base de jovens que, logo após a sua formação, beneficiem de um programa de estágios de 12 a 18 meses, de forma a tornarem-se mais aptos para o mercado. Infelizmente, em muitos casos, os jovens são recusados no primeiro emprego, por falta de experiência. Estamos a tentar colmatar essa lacuna, de forma que tenhamos uma base de jovens formados, com alguma experiência, suficiente para que possam ser, facilmente, absorvidos pelo mercado de trabalho. A indústria petrolífera sempre foi muito intensa em programas de formação, sempre se prestou muita atenção à formação ou ao desenvolvimento de quadros angolanos. Aliás, há alguns anos, era quase uma obrigação as empresas formarem ou capacitarem os técnicos angolanos. Hoje talvez não se veja com tanta intensidade.
ANGOP - Em 2021, a ANPG, concessionária nacional, publicou uma lista de 400 bens e serviços fornecidos às empresas petrolíferas que as operadoras de blocos devem adquirir, exclusivamente ou por preferência, às empresas angolanas.
BB - Como disse, inicialmente, este processo de elaboração de listas tem a ver com o Decreto Presidencial sobre o Conteúdo Local. E, como também já afirmei, o diploma cria três regimes: o regime de exclusividade, o regime preferencial e o regime de concorrência. Para que as empresas possam ser devidamente enquadradas nos serviços a prestar, essas listas acabam por ser a correspondência dos serviços. Vamos ter uma lista dos serviços de exclusividade, quer dizer que são serviços que só podem ser efectuados por empresas 100% angolanas, para depois termos outra lista de serviços para o regime preferencial. Quer dizer que não necessitam de ser exclusivamente angolanas. São empresas de direito angolano. E temos uma lista de serviços que geralmente são os serviços de maior exigência tecnológica, que entra para o regime de concorrência, no qual é expectável que seja para empresas com maior porte tecnológico. Essas listas foram trabalhadas pela indústria. Estamos a trabalhar com a ANPG, para que elas correspondam aos serviços que julgamos serem enquadrados nos diferentes regimes. Para ter sucesso, precisamos de um mecanismo de controlo eficiente e, acima de tudo, precisamos que as empresas nacionais tenham robustez financeira suficiente, para evoluírem do regime de exclusividade para o preferencial e eventualmente concorrer com as multinacionais. Caso contrário, teremos sempre uma base de empresas nacionais em regime de exclusividade e sem evolução. Não queremos ter empresas nacionais sempre a fazer os serviços mais básicos da indústria. Precisamos que as nossas empresas cresçam, se desenvolvam e se tornem capazes de concorrer com as multinacionais, para termos um conteúdo local efectivo e robusto, que traga benefícios para o país, para a economia e para melhorar as condições de vida de toda a gente.
ANGOP - Quando se fala em mecanismo de controlo eficiente, o que representa para a AECIPA um mecanismo à altura do que se pretende?
BB - Qualquer regulamento ou processo, para que seja eficiente, deve ser monitorado. E, quando falamos em mecanismo de controlo, estamos a falar em monitoramento. Por exemplo, quando falamos em empresas de regime de exclusividade, é importante que monitoremos o desenvolvimento de alguns serviços que estão no regime de preferência ou de concorrência, mas que já são serviços que podem ser desenvolvidos por empresas 100% angolanas. Então, há necessidade de transferirmos esses serviços que, em algum momento, pertenciam ao regime de concorrência, a fim de passarem para o regime de exclusividade. Isso é um processo que exige monitoramento. Onde é que está a existir evolução do serviço, onde é que estamos a ter empresas nacionais que já são capazes de desenvolver alguns serviços que, há algum tempo, faziam parte do regime de concorrência? É um aspecto de monitoramento. O outro aspecto é na outorga ou avaliação de contrato. É importante que nós (empresas prestadoras de serviços e os envolventes do sector) tenhamos o conforto e a segurança de que, quando estamos a falar ainda de regime de exclusividade, as empresas que concorrem para os projectos ou contratos de exclusividade sejam efectivamente empresas angolanas.
ANGOP – Recentemente, a AECIPA assinou um acordo com a homóloga nigeriana. Quais são os termos desse acordo?
BB - A AECIPA e a sua homóloga da Nigéria estão engajadas na promoção e no desenvolvimento do conteúdo local africano, numa colaboração transfronteiriça a nível das empresas prestadoras de serviços. O objectivo é nós, países produtores de petróleo, começarmos a olhar mais para dentro do nosso continente, onde já temos recursos, quer humanos, quer tecnológicos, para apoiar a indústria de cada um. Hoje, por exemplo, há uma expectativa muito grande de empresas angolanas actuarem no mercado moçambicano, podendo ser, digamos, os pioneiros na prestação de serviços no sector do gás.
Isto também acontece com a Namíbia, onde, à luz das recentes descobertas de petróleo e gás, manifestam a intenção de contarem com a intervenção de empresas angolanas. Ao longo dos últimos anos, estamos a promover essa colaboração transfronteiriça, e um dos termos que começam a ganhar muita forma é o conteúdo local africano.
Nos países onde já existe desenvolvimento na prestação de serviços, como na Nigéria e em Angola, tudo fazemos para ser os líderes da promoção da transferência de tecnologia, conhecimento e, muitas vezes, de transferência da mão-de-obra de um país para o outro, de maneira que possamos ser os donos do nosso próprio destino. Obviamente, vamos precisar sempre de empresas multinacionais para nos apoiarem, claramente. Vamos precisar sempre do suporte tecnológico que o nosso continente ainda não possui. Contudo, é importante que comecemos a desenvolver essa visão, essa estratégia de empoderar as nossas empresas, nos nossos países, de modo a criarmos uma dinâmica de interacção transfronteiriça dentro do nosso continente.
ANGOP - Quantas empresas prestadoras de serviços existem no país?
BB – Pelo menos 200 empresas prestadoras de serviços, registadas e em partilha. A AECIPA tem aproximadamente 177 empresas registadas, que variam desde empresas 100% angolanas, de direito angolano e as multinacionais, que conhecemos na prestação de serviços.
ANGOP – E em termos de empregos criados?
BB – Os dados à nossa disposição dão conta da existência de pelo menos 16 mil trabalhadores angolanos e mais uma reserva de pelo menos cinco mil estrangeiros dentro do sector de serviços da indústria petrolífera angolana.
ANGOP - Quais são as grandes preocupações da AECIPA?
BB - O conteúdo local (quer em Angola, quer em qualquer parte do mundo) só poderá ter sucesso se as empresas nacionais tiverem robustez financeira que permita prestar serviços muito mais eficientes, robustos e mais seguros. Essa robustez financeira só poderá ser alcançada se encontrarmos suporte, quer da banca, quer de fundos imobiliários, ou outras formas de desenvolvimento financeiro que hoje o mundo oferece.
A principal preocupação é a capacidade financeira inexistente das empresas nacionais para evoluírem e tornarem-se mais robustas. Outra preocupação diz respeito ao acerto do quadro regulatório a nível de vários segmentos. Ainda hoje, temos um quadro regulatório que obriga a que todos os serviços realizados em Angola sejam exclusivamente pagos em Kwanza. Mas, a indústria petrolífera é uma indústria internacional. As empresas nacionais precisam, muitas vezes, de fazer pagamentos, compras de equipamentos, mas o processo de transferência ou pagamentos ainda não é suficientemente expedito para permitir que haja celeridade, a fim de que possam desenvolver os seus serviços com naturalidade.
Também temos problemas com os termos de pagamento ou execução dos termos de pagamento dos contratos. Infelizmente, muitos dos nossos contratos não estão a ser honrados temporalmente. Isso quer dizer que as empresas prestadoras de serviços têm contratos com outros partícipes da indústria petrolífera, e, geralmente, existem termos de pagamento que, se não forem honrados dentro dos prazos, têm um efeito devastador. Trata-se de um efeito negativo muito grande sobre a capacidade de as empresas se manterem fortes e robustas, deixando-as sem capacidade de pagamento de salários a tempo e de fazer investimentos.
É uma preocupação já do domínio dos órgãos regulatórios da indústria, a ANPG e o Ministério, para que ajudem a trabalhar com as principais contratadoras da indústria, de tal maneira que se possa assegurar que os termos de pagamento sejam cumpridos e, consequentemente, as empresas nacionais (o conteúdo local), de uma forma geral, continuem a crescer e a desenvolver para servir o desenvolvimento socioeconómico do país.