Luanda – Recebido no Desportivo da Banca e colocado a treinar, durante meses, numa equipa de formação feminina do clube, onde deu os seus primeiros passos no basquetebol, o ex-internacional angolano Miguel Lutonda transpôs inúmeras barreiras até se tornar “General”.
Por Marcelino Camões e Walter dos Reis, jornalistas da ANGOP
Passada essa fase, Miguel Lutonda, actual técnico-adjunto da Selecção A de basquetebol masculino, notabilizou-se como exímio jogador na posição um (base) e como marcador de três pontos. Foi alcunhado General por um antigo treinador (depois jornalista), durante um jogo do campeonato nacional sénior masculino entre a sua equipa, o 1º de Agosto e o “rival” Petro de Luanda.
O antigo atleta do Grupo Desportivo da Banca, Grupo Desportivo da Nocal, ASA e do 1.º de Agosto concedeu, recentemente, uma entrevista à ANGOP, referindo que foi convocado pela primeira vez para a pré-selecção em 1990, mas apenas sete anos depois (1997) ficou entre os eleitos até ganhar o primeiro Afrobasket, em 1999, em Dakar (Senegal).
Coleccionador de títulos colectivos e individuais, tem no seu palmarés 11 campeonatos nacionais, dos quais dois no Sport Aviação (ASA) e nove no 1.º de Agosto. Aqui nos “militares” venceu igualmente oito supertaças, sete taças de Angola e oito taças dos Clubes Campeões Africanos.
Ao serviço da Selecção Nacional tem cinco campeonatos africanos “Afrobasket” e 31 títulos individuais.
Em contrapartida, Miguel Lutonda não se sente recompensado pelo contributo ao basquetebol, em particular, e ao desporto, em geral.
Nesta conversa, afirmou que gostaria de ver o seu nome associado a algo pelo qual um dia os netos possam dizer com orgulho "este foi meu avô".
Eis a entrevista na íntegra:
ANGOP – Quem é Miguel Lutonda?
Miguel Lutonda (ML) – Chamo-me Miguel Timóteo Pontes Lutonda, sou filho de Simão Lutonda e de Flávia Quaresma Pontes. Nasci no dia 24 de Dezembro de 1971, em Luanda, no município do Cazenga, na Rua A. O meu pai é natural de Maquela do Zombo, província do Uíge. Tenho cinco irmãos.
ANGOP - Como e quando enveredou para o basquetebol?
ML - Fui incentivado por um amigo e ex-colega da Escola Nzinga Mbandi, o Víctor, que vivia na Rua da Índia, no Cruzeiro. Na altura, era um dos mais altos da turma (1,86m). Antes de escolher o basquetebol, queria ser médico. Dado o momento, naquela fase complicada, com as rusgas, era obrigatório seguir para o serviço militar.
ANGOP – Por onde começou e que recordações tem?
ML - Comecei pelo Grupo Desportivo da Banca. Foi muito complicado, sem dinheiro para comprar sequer um par de sapatilhas para a prática do basquetebol.
Nem sequer sabia jogar, mas convidei um amigo, o Paulo Abrão, que era mais alto, para o primeiro teste no Desportivo da Banca, junto à Zona Verde. Fomos acompanhados pelos treinadores Elvino Dias, Júlio de Matos e Carlos Contreiras.
Nada sabendo sobre basquetebol, fomos aconselhados a iniciar a prática da modalidade com a equipa feminina da Banca, mas o meu amigo havia-se recusado.
Comecei a treinar com a equipa feminina, mas, num certo dia, o treinador da formação masculina chamou-me para completar o ‘cinco’ inicial, e nem eu sabia que já tinha evoluído tanto. A partir daí, passei a treinar com os masculinos.
ANGOP - Tem memórias das dificuldades na época?
ML – Sim. A principal dificuldade era ter um par de sapatilhas. Deslocar-me a pé do Cruzeiro até a Zona Verde… durante este percurso queria desistir porque fazia um percurso longo: passava (mais tarde) por alguns bairros melindrosos do antigo mercado do Roque Santeiro, para chegar à Nocal.
Naquela fase, casa própria era um grande desafio, sem importar por quanto tempo de contrato jogaria por um clube.
A partir dos meus contactos, deixei o Grupo Desportivo da Nocal e transferi-me para o ASA, onde joguei durante três épocas, com um salário de três mil dólares por ano, totalizando nove. Com esses valores, comprei um apartamento nos Combatentes, que, actualmente, está arrendado.
ANGOP – Por que clubes passou?
ML - Passei pelo Grupo Desportivo da Banca, Grupo Desportivo da Nocal, ASA e 1.º de Agosto.
ANGOP – Que bons momentos teve como jogador?
ML - Sem dúvida, foram os títulos. Conquistei 11 campeonatos nacionais, dos quais dois pelo ASA e nove pelo 1.º de Agosto. Pelo 1.º de Agosto, venci, igualmente, oito Supertaças, sete Taças de Angola e oito Taças dos Clubes Campeões Africanos.
Já ao serviço da Selecção Nacional, tenho cinco campeonatos africanos ‘Afrobasket’ e 31 ‘títulos’ individuais.
ANGOP - Como avalia o desenvolvimento da modalidade até à data?
ML – Actualmente, o estado da modalidade não é dos melhores. É preciso maior massificação e investimento humano, para se colherem frutos. Penso ser já o momento da criação de uma academia nacional, porque, para além de Luanda e Benguela, há necessidade de se expandir o basquetebol para as outras províncias.
ANGOP - Até que ponto ter sido jogador o ajudou na vida?
ML - Ter sido jogador ajudou-me muito, porque consegui construir a minha vida, bem como ajudei e ajudo a minha família e outras pessoas.
ANGOP - Que conselho para a juventude?
ML - Aconselho os jovens a não aderir a práticas negativas, pois sempre é possível concretizar os sonhos. Aconselho-os, também, a trabalhar, a ter alguém como espelho e a abandonar os maus caminhos, incluindo as drogas.
Sempre se pode ser desportista, electricista, mecânico ou músico. Esqueçam o que é negativo que surge nas vossas mentes e pensem sempre de forma positiva.
Sempre tive como espelho Michael Jordan. Ganhei um concurso de ‘smash’ com uma altura de 1.86m. Tinha sido incentivado por Jacinto Olim ‘Jabila’, que viu em mim dotes ainda durante alguns treinos.
ANGOP - Se tivesse de apontar um facto bom e outro mau, que diria?
ML - Se tivesse de apontar um momento mau na minha carreira desportiva, seria o seu início, ao passo que o bom foi quando ganhei, pela primeira vez, o Afrobasket, em 1999, já que vínhamos de uma derrota em 1997, em Dakar, República do Senegal.
Ganhámos um título em casa, e eu não tinha noção do que é ganhar nessa condição. Pude jogar com os mais velhos David Dias e Jean Jacques. Posso dizer que joguei com várias gerações de atletas.
ANGOP - O Afrobasket`2025 será uma oportunidade para Angola resgatar o título?
ML - A organização do Afrobasket´2025, em Luanda, vai exigir muito trabalho, e não será fácil vencê-lo. O Sudão do Sul, a Nigéria, o Egipto e a Tunísia virão com muita força para conquistar o troféu. Será, sim, uma oportunidade para se resgatar o título.
ANGOP - O que seria se não fosse basquetebolista?
ML - Se não fosse basquetebolista, seria médico. Cuidar do ser humano é muito importante para mim.
ANGOP - O que representa, para si, o 1.º de Agosto?
ML - Para mim, o 1.º de Agosto representa tudo quanto eu tenho hoje.
ANGOP – Foram vários títulos nacionais e africanos. Sente-se recompensado?
ML – Ainda não me sinto recompensado. Pelo meu contributo ao basquetebol, em particular, e ao desporto, em geral, gostaria de ver o meu nome associado a algo pelo qual um dia os meus netos possam dizer com orgulho “este foi meu avô”.
ANGOP - Apesar das qualidades e dos títulos, por que razão não enveredou para o profissionalismo?
ML - Já tive vários convites, mas o valor dos contratos que recebia em Angola era superior.
Já fui convidado por várias equipas, das quais o Futebol Clube do Porto, onde cheguei a estagiar. Tinha de alterar a nacionalidade por via do casamento, mas não pude, porque já tinha esposa.
Fui contactado para ir à Turquia e à América, mas terminei a minha carreira em Angola. Já lá vão 13 anos, e estou satisfeito. A idade não perdoa.
ANGOP – De extremo a melhor base do país e quiçá de África…
ML - Quando comecei a minha carreira, jogava na posição dois e três, até 1996. O falecido professor Romero convidava-me para treinar no Petro de Luanda, antes de convocarem a Selecção. Já tinha um contrato do Petro à mesa para assinar, porém o tipo de trabalho no treino era muito intensivo, mais do que numa unidade militar. Eu tinha tudo para assinar.
Fui convocado pela primeira vez para a pré-Selecção em 1990, mas só entrei para o conjunto sete anos depois (1997). Por isso, aconselho os jovens a nunca deixar de acreditar.
O técnico Romero é que me incentivou a jogar na posição de base, uma vez que havia outros jogadores mais altos do que eu, como Necas, Benjamim Avô, Herlânder Coimbra e Honorato Trosso. Ele deu-me vídeos para continuar a desenvolver o meu trabalho, e, assim, avancei.
ANGOP – Como surge a alcunha ‘General’?
ML - O meu treinador Contreiras, na Banca, num ‘dérbi’ 1.º de Agosto - Petro de Luanda, dizia: “Aí está o General, mais um ponto”. E assim ficou a alcunha ‘General’.
ANGOP – Que tipo de trabalho realizava para se destacar?
ML - O trabalho individual que fazia sempre. Eu vivia no 9.º andar, nos Combatentes, e todos os dias subia às escadas a correr, com dois bidões de 25 litros, com água.
Também fiz um ‘colete’ de chumbo e corria na areia na Ilha de Luanda, para melhorar a minha dinâmica individual.
ANGOP - Fale da importância dos títulos que conquistou.
ML - A primeira importância é mesmo o nosso basquetebol, pois hoje temos 11 títulos e somos reconhecidos graças às vitórias. Participei do Mundial de Indianápolis, do Japão e da Turquia, bem como dos Jogos Olímpicos de Sidney (2000) e de Atenas (2004). Portanto, essas vitórias têm esta característica que passa por conhecer outros países e realidades, assim como figuras internacionais, nomeadamente Kevin Durant e Stephen Kerry.
O sabor da vitória tem muito a ver com tudo isso que acabei de mencionar.
ANGOP - Esteve perto de ser irradiado por empurrão a um árbitro. Como terminou esse caso?
ML – Ao longo da minha carreira, tive um mal-entendido com o árbitro Horácio Macedo e, durante as entrevistas que tenho dado, peço sempre desculpas. Foi uma fase muito quente do jogo.
ANGOP – Ainda se lembra de que houve uma manifestação popular em frente à Rádio Nacional?
ML - Sobre isso, eu quero agradecer a todas as pessoas que estiveram ao meu lado, os fãs, em particular, e o povo, em geral. Foi algo que não esperava. Houve uma confusão, e foi necessária a presença da Polícia de Intervenção Rápida. É algo que não deve acontecer com ninguém, porque, depois, a pessoa fica ‘sem chão’.
ANGOP – Relativamente ao aspecto técnico, são contratados, por norma, treinadores estrangeiros. Porquê?
ML - Acredito que os treinadores têm ideias próprias, sobretudo em melhorar o nosso basquetebol, e isso não só ocorre em Angola, mas também noutros países. Os dirigentes angolanos devem ter confiança e coragem para indicar treinadores nacionais para as selecções.
Deve-se apostar, sim, nos técnicos nacionais, mas não se pode descurar a sua formação, a fim de que estejam mais habilitados para os desafios, como se nota, hoje, noutras modalidades, em que os angolanos lideraram.
ANGOP - Técnico-adjunto da Selecção. Ainda está longe para ser o principal?
ML - Eu gosto de fazer carreira paulatinamente e trabalho em função disso. Esse é o meu objectivo. Estou agora com o Nível II e pretendo fazer o III, para, depois, esperar, porque o tempo passa. Como dizia Mário Palma: “Atrás do tempo, o tempo vem.
ANGOP – Do seu ponto de vista, quem é o melhor jogador angolano de todos os tempos?
ML – Baduna, porque é um atleta que podia fazer todas as posições. Ele podia jogar na posição um, dois, três, quatro e cinco. Muitas vezes, jogava de frente e de costas. Temos também alguns jogadores que vou citar, como Jean Jacques e Ângelo Victoriano. O falecido era um atleta com todos os títulos, mas nunca foi MVP. Tudo isso é relativo.
ANGOP – Ao nível do basquetebol, Angola é uma potência em África, mas levou anos para ter um representante na NBA, o Bruno Fernando.
ML - Existem várias etapas para se chegar à NBA. Ao falar do Bruno, devo, antes, agradecer ao Manuel Silva ‘Gi’, por me convidar a trabalhar com ele na Selecção de Sub-16 e Sub-18. O Bruno fez parte desse processo. Trabalhámos e fomos ao Madagáscar vencer o Africano. Acabámos, posteriormente, por ir ao Mundial do Dubai.
Na fase de grupos, jogámos contra a equipa norte-americana, e daí os olheiros notaram que o Bruno poderia ir para a NBA.
Jogámos, também, o Africano Sub-18. Foi daí que os meninos Bruno e Sílvio Sousa seguiram para a América.
Devemos começar a investir no capital humano entre os 12 e 13 anos e não esperar que sigam para os EUA ou esperar por jogar um Afrobasket.
Temos, no 1.º Agosto, um rapaz de 13 anos, de 2,5 metros, que já devia seguir para a América. Trata-se de um investimento que deve ser feito primeiro, a fim de, com o tempo, colhermos frutos.
A prestação do Bruno na NBA carece de mais trabalhos. Na posição em que joga, deve olhar mais para a sua eficácia e ajudar mais a equipa defensivamente.
ANGOP - Treinador, ministro ou presidente da FAB?
ML - Existem dois cargos que, mesmo se fazendo bem o trabalho, haverá sempre críticas. O de ministro e o de presidente da FAB, dado que, por mais que o titular do cargo faça as coisas de forma certa, as pessoas vão sempre dizer que ele está a ‘mexer’ no dinheiro.
Prefiro ser treinador principal, porque, pelo menos, as pessoas vão ver que lá estou pelo meu próprio trabalho.
PERFIL
Nome completo: Miguel Timóteo Pontes Lutonda
Data de nascimento: 24 de Dezembro de 1971
Naturalidade: Luanda
Filiação: Simão Lutonda e Flávia Quaresma de Sousa Pontes
Estado Civil: Solteiro
Religião: Tocoísta
Altura: 1, 86m
Peso: 85 quilos
Livro: ‘Basquetebol: Manual para Professores e Treinadores de Jovens’, de Jorge Henriques
Defeito: Teimosia
Qualidade: Humildade
Música: Rap e semba
Cor preferida: Amarela
Prato preferido: Funje de carne seca e frango estufado com banana-pão fervida
Perfume: Hugo Boss
Viagem: Hong Kong (China). MC/WR/IN/ADR