Luanda – Pela segunda vez, em apenas oito meses, o Burkina Faso viu-se confrontado com um novo golpe de Estado, a 30 de Setembro último, que resultou no derrube do chefe da Junta Militar, tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba.
Por João Gomes Goncalves
Paul-Henri Sandaogo Damiba estava no posto desde Janeiro último, altura em que forçou o afastamento do Presidente eleito, Roch Marc Christian Kaboré.
Trata-se do segundo golpe desde a destituição de Kaboré, acusado pelos militares de imobilismo no combate ao jihadismo que afecta aquele país desde 2015.
Pelos mesmos motivos, Damiba também foi afastado por militares dirigidos pelo capitão Ibrahim Traoré, de 34 anos de idade, e comandante das forças especiais “Cobra”, uma unidade anti-jihadista estacionada na região de Kaya (norte).
No anúncio feito na televisão estatal, o capitão Ibrahima Traoré afirmou que o tenente-coronel Damiba “foi demitido” das suas funções de presidente do Movimento Patriótico para a Salvaguarda e para a Restauração (MPSR), órgão dirigente da Junta, alegadamente por ter falhado na missão de combater os jihadistas.
Os militares invocaram “a contínua degradação” da situação de segurança do país, denunciando que, em vez de se libertar os territórios ocupados, as regiões antes pacíficas passaram para o controlo terrorista.
Ao tomar o poder, a 24 de Janeiro último, Paul-Henri Sandaogo Damiba prometera dar prioridade à segurança do Burkina Faso, mas observadores constatam que, pelo contrário, os sangrentos ataques jihadistas se multiplicaram, particularmente no norte.
As novas autoridades militares anunciaram ainda o encerramento das fronteiras terrestres e aéreas do país, da meia-noite às cinco da manhã, suspenderam a Constituição e dissolveram o governo e o Parlamento de Transição, bem como instauraram um recolher obrigatório das 21:00 às 05:00 horas da manhã.
Prometeram convocar, a curto prazo, as forças vivas da Nação, a fim de indicar um novo Presidente burkinabe, civil ou militar.
Entretanto, o Presidente derrubado, Paul-Henri Sandaogo Damiba, não abdicou imediatamente, antes de deixar o país para se refugiar no vizinho Togo e depois de apelos mal sucedidos para que os golpistas depusessem as armas” e reconsiderassem a sua posição para poupar o Burkina Faso de uma guerra fratricida inútil.
Sem, todavia, revelar onde se encontrava, Damiba desmentiu ter-se refugiado numa base francesa, em Kamboinsin, tal como insinuado por persistentes rumores que circularam na capital burkinabe, Ouagadougou, e disse tratar-se de uma “pura intoxicação” dos seus inimigos, visando manipular a opinião pública.
França desmente intervenção militar com Damiba
Reforçando o desmentido de Damiba sobre a sua presença numa base militar francesa, o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros desmentiu formalmente, na altura, qualquer implicação nos últimos acontecimentos do Burkina Faso.
Num comunicado oficial, a diplomacia francesa explica que a base onde se encontram as tropas francesas e a sua Embaixada, em Ouagadougou, nunca acolheram Paul-Henri Sandaogo Damiba.
A imprensa noticiou, a 2 de Outubro de 2922, que foram lançadas bombas lacrimogéneas do interior da Embaixada francesa na capital burkinabe, para dispersar os manifestantes que apoiam o golpe que proclamou Ibrahim Traoré como o novo líder do país.
Segundo o professor francês de geopolítica, Michel Galy, França ''não tem interesse'' em defender o Burkina Faso, mas o problema é que, além dos ataques dos burkinabes contra a Embaixada francesa, em Ouagadougou, e contra o Centro Cultural Francês, em Bobo-Dioulasso, existem antecedentes.
Entre tais antecedentes Galy incluiu o facto de que, no momento da destituição de Blaise Compaoré, que dirigiu o país de 1987 a 2014, e durante muito tempo apoiado por Franca, ter sido exfiltrado pelos Exércitos francês e ivoiriense, para escapar da vendeta popular e aos processos de judiciais.
Citou ainda o caso do Tchad, onde após a morte do Presidente Idriss Déby, em Abril de 2021, o chefe de Estado francês, Emmanuel Macron, e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, se teriam envolvido na organização da sua sucessão pelo filho.
"Quanto ao Burkina (Faso), estaria muito admirado, porque seria extremamente inadequado haver essas crispações em torno da presença do Exército francês”, sublinhou, na altura.
No entender de Michel Galy, há ainda o exemplo do Mali da época do Presidente François Hollande, quando a França marcava a data das eleições, como se de uma governação à distância se tratasse, e particularmente a região do Sahel, onde as forças francesas Serval e Barkhane estavam, de certa maneira, numa situação de extraterritorialidade acima dos Estados e dos Exércitos nacionais, situação dificilmente digerida pelas classes políticas e que não se podia prolongar.
Como de hábito, a CEDEAO, em cujas instâncias o Burkina estava suspenso desde o golpe de Estado de 24 de Janeiro, condenou aquilo que considerou “tomada do poder pela força”, passo também seguido pela União Africana (UA), na voz do seu presidente, o diplomata tchadiano Moussa Faki Mahamat, que reprovou a mudança anticonstitucional do governo no Burkina-Faso.
Por seu lado, a União Europeia (UE) manifestou-se inquieta, à semelhança dos Estados Unidos que expressaram o sentimento de que o golpe de Estado periga os esforços em curso, nomeadamente os desenvolvidos pela CEDEAO, com o objectivo de enquadrar a Transição.
Já o secretário-geral da ONU, António Guterres, condenou “veementemente qualquer tentativa de tomada do poder pela forca”.
Manifestações pró-russas aumentam na região
Nos últimos anos, a influência da Rússia tem aumentado em vários países da África francófona, com destaque na República Centro-Africana (RCA), no Mali e no Burkina Faso, onde é quase normal ver-se bandeiras russas nas manifestações.
No dia 27 de Março deste ano, grupos de manifestantes saídos de pequenas organizações da sociedade civil reuniram-se, em Ouagadougou, em apoio a Rússia e pediram o fim da presença militar francesa naqueles países do Sahel.
A marcha inicialmente prevista transformou-se em conferência de imprensa durante a qual as organizações pediram a intervenção da Rússia no Mali para acabar com o terrorismo.
Algumas horas antes do último golpe, no Burkina Faso, várias centenas de pessoas manifestaram-se na capital para reclamar pela saída do poder do tenente-coronel Damiba, pelo fim da presença militar francesa no Sahel e por uma cooperação militar com a Rússia.
Histórico do jihadismo no Sahel
Nos finais de Março de 2012, os rebeldes independentistas touareg da Frente de Libertação de Azawad, da região maliana de Kidal (norte), desencadearam uma ofensiva contra Bamako, pouco depois da morte do coronel Muamar Kadafi, na Líbia, culminando com o derrube do então Presidente maliano, Amani Toumani Touré, pelo coronel Sanogo.
No mesmo ano, os independentistas malianos foram escorraçados pelos seus aliados islamitas associados ao grupo Al-Qaïda no Marebe islâmico (AQMI), cujo aliado, Ansar Dine, era dirigido pelo chefe touareg Iyad Ag Ghaly. Em pouco tempo, os mesmos tomaram o controlo das regiões norte de Gao e Tombouctou.
Em Maio de 2014, o Exército maliano é soberbamente derrotado em Kidal e, a 01 de Agosto do mesmo ano, Franca substitui a sua operação Serval pela operação Barkhane.
Por causa da expansão do jihadismo no Sahel, os cinco Estados da região (Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Tchad), acompanhados por França, durante uma cimeira de 15 a 17 de 2014, em Nouakchott, criaram o grupo “G5-Sahel ou G5S”, um quadro institucional de coordenação e de monitorização da cooperação nos domínios das políticas de desenvolvimento e de segurança.
Desde 2015, a violência propalou-se para o sul, expandindo-se para o Burkina Faso e o Níger. Em Fevereiro de 2021, Bernard Emié, chefe dos Serviços de Inteligência externa francesa, confirmava que os países do Golfo da Guiné, designadamente o Benin e a Côte d’Ivoire, eram também alvos da Al-Qaeda.
Entretanto, em Fevereiro último, a Junta Militar no poder no Mali, num comunicado assinado pelo Ministério da Administração do Território e da Descentralização, anunciou a sua retirada de todos os órgãos e instâncias do G5 Sahel, incluindo da força conjunta antijihadista.
As autoridades malianas alegaram que uma conferência dos chefes de Estado e de Governo da instituição prevista para 22 de Fevereiro, em Bamako, consagraria o início da Presidência do Mali no G5. Mas, justificam, três meses depois da data indicada, a reunião nunca teve lugar, e rejeitam os argumentos de um Estado-membro, que o comunicado não cita, segundo os quais a situação política interna no Mali não era propícia para Bamako assumir o cargo.
O Governo maliano atribuiu à oposição de alguns Estados-membros do G5-Sahel à presidência do Mali as manobras de “um Estado extra-regional” que também não citou, “visando desesperadamente isolar o Mali”.
Todavia, sabe-se que as relações entre o Mali e os países europeus deterioraram-se sobremaneira, desde o dia 09 de Janeiro de 2022, quando a CEDEAO decidiu aplicar uma série de medidas económicas e diplomáticas para flagelar a intenção da Junta Militar de se manter no poder por vários anos, depois de dois golpes, em Agosto de 2020 e Maio de 2021.
Nos últimos meses, os ataques contra alvos civis e militares aumentaram no norte e leste do Burkina Faso, onde as cidades estão cercadas pelos jihadistas que atacam colunas e dinamitam pontes rodoviárias, havendo já mais de dois milhões de deslocados internos.
Com o derrube de Damiba, eleva-se para cinco o número de golpes de Estado na região, desde 2020, sendo dois no Burkina Faso, dois no Mali e um na Guiné-Conackry.
Nono golpe de Estado na história do Burkina Faso
Antiga colónia francesa, o Burkina Faso vive uma sucessão de golpes de Estado desde a sua independência, em 1960, ainda com a designação de República do Alto Volta, nome justificado pela sua localização nos cursos superiores do rio Volta (Volta Negro, Vermelho e Branco).
O primeiro golpe militar foi protagonizado, em 1966, quando o tenente-coronel Sangoulé Lamizana derrubou Maurice Yaméogo, o primeiro Presidente do país, no auge de uma crise social marcada por manifestações populares e greves recorrentes de estudantes e funcionários públicos.
Depois de uma transição política de quatro anos, Lamizana venceu duas eleições consecutivas, na década de 1970, antes de ser derrubado pelo coronel Saye Zerbo, em 25 de Novembro de 1980.
Este último revogou a Constituição do país e criou, no seu lugar, uma Junta denominada Comité Militar de Recuperação para o Progresso Nacional (CMRPN), como autoridade suprema da nação, que muito cedo viria a confrontar-se com as mesmas convulsões sociais enfrentadas por Lamizana, culminando-se num novo golpe de Estado, dois anos depois.
A nova acção golpista foi liderada pelo major Jean-Baptiste Ouédraogo, que prometeu a transição para um governo civil, mas lutas internas entre a esquerda e a direita da estrutura governamental de então, o Conselho para Salvação Popular (CSP), precipitaram a sua destituição no ano seguinte.
Com o afastamento de Ouédraogo, em 04 Agosto de 1983, numa operação liderada por Blaise Campaoré, o poder é confiado ao líder da facção da esquerda do CSP e companheiro de armas, capitão Thomas Sankara, que na altura se encontrava preso pouco depois de ser nomeado primeiro-ministro.
Sankara muda o nome do país de República do Alto Volta para Burkina Faso e lança uma série de reformas sociais, económicas e políticas que acabariam por desagradar alguns aliados, incluindo o seu antigo companheiro de armas Blaise Campaoré, que organizou mais um golpe Estado sangrento.
Em 15 de Outubro de 1987, Sankara é assassinado juntamente com outros 12 oficiais militares, com o argumento da deterioração das relações com os países vizinhos e com a antiga potência colonial, e Campaoré assume a chefia do Estado até Outubro 2014.
Um projecto de alteração da Constituição para afastar ou rever a limitação dos mandatos do Presidente República despoletou, a 28 de Outubro de 2014, um amplo movimento de protestos com marchas incessantes e manifestações de rua, em Ouagadougou, forçando Campaoré a abandonar o poder, 27 anos depois.
Campaoré demitiu-se a 31 de Outubro de 2014 e, no mesmo dia, os militares tomaram o poder sob a liderança do tenente-coronel Isaac Zida, que se comprometeu a conduzir o processo de transição até às eleições presidenciais então anunciadas para o ano seguinte.
Com a participação da oposição, da sociedade civil e dos líderes religiosos foi criado um governo de transição com Michel Kafando como Presidente interino e o coronel Zilda como primeiro-ministro e ministro da Defesa.
Mas em 16 Setembro de 2015, Kafando e Zilda foram vítimas de um novo golpe de Estado orquestrado pelo general Gilbdert Diendéré, do Regimento da Segurança Presidencial (RSP), mas este último viria a pedir desculpas pelo “erro cometido”, e restituiu as duas entidades nas suas funções, cinco dias depois.
Foram então realizadas eleições presidenciais, em 29 de Novembro de 2015, e Marc Christian Kaboré, venceu na primeira volta com 53,5 por cento dos votos, derrotando o empresário Zéphirin Diabré, que obteve 29.7 por cento dos votos.
Kaboré viria a ser reeleito em 2020.