Coreógrafa defende formação para impulsionar dança

     Entrevistas           
  • Luanda     Segunda, 29 Abril De 2024    16h21  
Companhia de Dança Contemporânea de Angola
Companhia de Dança Contemporânea de Angola
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Luanda - A coreógrafa e investigadora Ana Marques considerou indispensável a formação massiva de dançarinos e a construção de infra-estruturas adequadas  para dinamizar a dança, em Angola.

Por António Culeca e Joana Marcos, Jornalistas da ANGOP

 

Ana Marques, que falava em entrevista à ANGOP por ocasião do Dia Mundial da Dança, que se assinala hoje, 29 de Abril, defendeu maior aposta no sector para se estimular a preservação das músicas e danças da cultura nacional.

Explicou ser fundamental reformular o ensino das artes e apoiar os poucos artistas de dança que “continuam corajosamente a resistir com o seu trabalho profissional, sério e progressista”.

A este propósito, advertiu contra tentativas de inviabilizar a livre iniciativa e bloquear propostas inovadoras. 

“É importante parar de tentar abater aqueles que têm propostas artísticas inovadoras e livres”, afirmou Ana Marques, apelando, ao mesmo tempo, para a recuperação do “verdadeiro e belo património de dança angolana, sem distracções com aquilo que é mais visível”.

 

Eis a entrevista na íntegra:

 

ANGOP – Há quanto tempo Ana Marques dança e como começou a  sua jornada na dança?

Ana Marques (AM) – Comecei a dançar aos meus oito anos de idade, numa escola profissional e, aos 15 anos de idade, por força das circunstâncias, na Angola independente, sem quadros, fui nomeada directora da Escola Nacional de Dança (END).

Nessa altura, comecei também a dar aulas, com o apoio pedagógico de professores cubanos e russos, e iniciei-me como bailarina e coreógrafa.

Mais tarde, fiz a minha licenciatura com especialização na área pedagógica, fundei a primeira companhia de dança profissional angolana, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC), em 1991, e, de volta à universidade, concluí com sucesso o meu mestrado em Performance Artística – Dança, que me abriu as portas à investigação.

ANGOP – Quais são os principais desafios que enfrenta como profissional nessa área?

AM – Dirigir e defender um projecto profissional quer a nível da formação, quer a nível da criação artística, sem grande apoio e num país onde a iliteracia cultural e artística é gritante.

ANGOP – Que benefícios físicos e mentais tem a dança?

AM – Não sou muito adepta da prática de dançar para ficar em forma, mas aprender a dançar de forma profissional desenvolve nas crianças e nos jovens, de forma muito particular, a capacidade de estruturar o pensamento e de desenvolver não apenas a inteligência motora mas também a inteligência emocional e dos sentidos.

As crianças e os jovens que praticam danças têm mais facilidade em entender outras matérias como a matemática, por exemplo.

ANGOP – A dança  pode ser usada como forma de expressão artística?

AM – Apesar de existir em diversos domínios e contextos, a dança é, essencialmente, uma forma de expressão artística.

ANGOP – Que diferentes papéis os dançarinos desempenham numa produção de dança?

AM – Depende dos coreógrafos. Eu, por exemplo, nunca faço peças em que há uma narrativa do início ao fim com personagens que aparecem diversas vezes em cena.

De todas as formas, os bailarinos são escolhidos para interpretar os momentos de uma criação em dança, sejam personagens ou não.

Na dança contemporânea, existem situações em que os coreógrafos trabalham a primeira fase das suas peças, o trabalho de laboratório, em conjunto com os bailarinos, procurando juntos explorar as possibilidades de movimento para um determinado tema.

ANGOP – Como pode a dança ser usada como terapia para pessoas com deficiência ou de saúde mental?

AM – Depende do tipo de deficiência. A dança pode dar a essas pessoas uma possibilidade de se expressar sem terem de falar, de conhecimento do seu corpo, do contacto com a música e do desenvolvimento de uma sensação de realização através do cumprimento com sucesso dos desafios que lhes são propostos.

Existem bailarinos em companhias profissionais com alguns tipos de deficiência. A CDC Angola também é uma companhia de dança inclusiva.

ANGOP – Sobre a Companhia de Dança Contemporânea, criada em 1991, actualmente este projecto em que pé está? Quantas pessoas já se beneficiaram dele?

AM – São informações certas, comprovadas por milhares de pessoas, em Angola e no estrangeiro, que viram a Companhia de Dança, bem documentadas em livros, fotografias, postais e filmes.

O projecto está de pé e a fazer 33 anos. A CDC Angola já não é um projecto, mas sim, uma instituição idónea!

Enquanto companhia de dança, a sua vocação é criar e partilhar com o público as suas obras, o seu trabalho. Além dos espectáculos, a CDC Angola tem fomentado a aproximação das pessoas com aulas abertas e auxiliado, na formação e superação com masterclasses e workshops abertos.

ANGOP – Quais são as danças tradicionais e populares de Angola?

AM – O nosso país tem um grande acervo dançarino, são centenas e centenas de danças em todas as regiões etnolinguísticas que conformam a nossa rede patrimonial.

Não vou aqui cair no erro que algumas pessoas cometem quando exibem o pouco que sabem da nossa cultura, citando apenas três ou quatro das regiões de Angola e a mais comum é a da cultura cokwe.

Temos danças populares e tradicionais em cada região do país. Enquanto as populares são sempre recreativas e as pessoas acrescentam livremente novos passos e movimentos, as tradicionais são mais conservadoras, podendo ter funções e justificações muito específicas para serem apresentadas.

Além do contexto recreativo, elas podem ainda estar ligadas a contextos religiosos, de celebração, de ritual, de terapia e também artístico.

ANGOP – Na sua opinião, como está actualmente a dança em Angola?

AM – Não é nenhuma maravilha. Esta é a resposta de alguém que luta há mais de 40 anos por uma política de formação, de superação e de investigação e que pouco ou nada vê, em termos de esforço para reverter o quadro de atraso absoluto nesta área.

Temos muita gente a dançar, numa escola oficial que funciona de forma deficitária, com ensinadores sem formação, facto que leva as danças patrimoniais a serem adulteradas com algumas em vias de extinção.

Há também uma grande relutância em se aceitar que o progresso só é possível com a existência de um trabalho de criação de autor, ou seja, no contexto da dança cénica profissional.

Contudo, existem pouquíssimos profissionais que possam, verdadeiramente, usar esta designação. Só com profissionais nas mais diversas áreas, poderemos reverter o quadro.

ANGOP – Face à realidade do país, é possível viver de dança?

AM – É muito difícil pois a formação é má, não há suficientes escolas de formação profissional nem muitas companhias de dança.

Todavia, por outro lado, o dito mercado absorve toda a gente e mais alguma coisa, empregando em escolas, creches, ginásios, clubes, estúdios, etc, qualquer um que se apresente como “professor” de dança, sem exigir qualquer diploma ou sem comprovar a competência dessas pessoas.

E há também alguns jovens a dançar em festas de casamento, baptizados, aniversários, tentando ganhar a vida. A verdade é que o importante seria investir na formação séria, para que se crie uma verdadeira classe de profissionais da dança, honestos, e para que deixemos de nos andar a enganar uns aos outros.

ANGOP – Hoje, existem muitas danças. Como olha para aquelas que são explícitas e declinam os valores morais?

AM – Eu não sou nada moralista e vejo todas as danças e todos os géneros como um conjunto de linguagens que servem diversas formas de comunicar e, se existem, é porque são necessárias.

As danças eróticas, as danças de sedução, existem em todo o mundo e sempre existiram. O que não me parece bem é as pessoas confundirem as coisas e ensinarem ou permitirem que crianças aprendam e as dancem. Tudo tem o seu tempo e o seu lugar.

Esse tipo de dança deve acontecer em lugares privados e apropriados, para pessoas de maior idade e não na televisão (pelo menos dentro dos horários em que as crianças ainda estão acordadas) ou em festas infantis e nas escolas, como eu já presenciei!

Mas a nossa sociedade está doente e deverá mesmo ser reiniciada com grandes preocupações no que toca à educação das crianças e jovens sem as privar das suas liberdades e sem as formatar com valores religiosos excessivos, tão perigosos e desviantes como as tais danças.

ANGOP – A nova geração, actualmente, está a optar por danças modernas e internacionais, o que fazer para preservar as tradições da cultura angolana?

AM – As novas gerações têm que dançar as danças do seu tempo e não do tempo dos seus avós.

O que importa é sensibilizar as crianças e jovens a este acervo patrimonial e, mesmo que não o queiram dançar,  que o conheçam e respeitem.

Portanto, investigar as danças e criar colectivos regionais que as guardem e divulguem é, quanto a mim, o passo a dar.

Mas para isso, claro está, é importante fazer-se um projecto com estratégias muito concretas, coordenado por um conjunto de investigadores (com estudos em antropologia da dança e etnocoreologia) e de pessoas interessadas que saibam acatar os ensinamentos na posição de assistentes que poderão, posteriormente, ganhar autonomia para a continuação deste grande trabalho. De outra forma não é possível e os não resultados estão à vista: quase não existem publicações actuais sobre as nossas danças patrimoniais.

ANGOP – Nas vestes de bailarina, que opinião se lhe oferece dar sobre o futuro da dança no país?

AM – Nas vestes de bailarina, coreógrafa, professora e investigadora, a opinião  é a mesma: formação, formação, formação!

Reformular o ensino das artes, sensibilizar a sociedade para a importância das artes, oferecendo-lhe qualidade, apoiar os poucos artistas de dança que continuam corajosamente a resistir com o seu trabalho profissional, sério e progressista, parar de tentar abater aqueles que têm propostas artísticas inovadoras e livres, recuperar o nosso verdadeiro e belo património de dança, sem distracções com aquilo que é mais visível.

E, muito importante, passar à acção e parar com o discurso demagógico e bolorento de que só as tradições devem merecer atenção. Não esquecer: no século XXI, os artistas de dança do mundo inteiro, incluindo a nossa África, estão atentos e conectados e já navegam em outros oceanos. Vamos arriscar! A tradição são as nossas raízes a preservar, mas o progresso está em projectos corajosos e inovadores!

 

Perfil

 

Ana Marques é Bailarina, coreógrafa e investigadora, tem vários artigos publicados em periódicos angolanos e revistas de especialidade estrangeiras.

Fala quatro línguas, designadamente, francês, português, inglês e espanhol. Em seu tempo livre gosta de ler, regar plantas e ir à praia.  

É autora dos livros “A Alquimia da Dança”, “A Companhia de Dança Contemporânea de Angola”, “Memória Viva da Cultura do Leste de Angola”, “Máscaras Cokwe: A Linguagem Coreográfica de Mwana Phwo e Cihongo”, “Companhia de Dança Contemporânea de Angola – 30 Anos de Resistência e outros”.

Trabalhou durante 37 anos no Ministério da Cultura angolano, onde foi directora e professora da Escola de Dança, bem como autora das primeiras acções para a fundação de um ensino profissional das artes, em Angola.

Foi também membro das comissões instaladoras do Instituto Superior de Artes, dos Institutos Médios de Artes e da comissão interministerial para a criação do Subsistema de Educação Artística em Angola, assim como consultora do vice-primeiro-ministro e da ministra da Cultura.

Pioneira da dança contemporânea, em Angola, fundou a primeira companhia profissional angolana, denominada a “Companhia de Dança Contemporânea de Angola”, com a qual propõe novas formas e conceitos de espectáculo, dividindo a sua criação entre a intervenção, a crítica social e a extensão artística do seu trabalho de investigação sobre as danças patrimoniais angolanas, com incidência na cultura cokwe.

A implementação da Dança Inclusiva é outra das suas contribuições para uma diversificação do olhar sobre a dança em Angola.

Como reconhecimento da sua contribuição para o desenvolvimento das artes e da cultura em Angola, foram-lhe atribuídos o “Prémio Nacional de Cultura e Artes”, em 2006, o prémio “Identidade” da União Nacional dos Artistas e Compositores em 1995, os “Diplomas de Honra” em 2006 e de “Mérito” em 2016, do Ministério da Cultura de Angola, o Diploma de Mérito do Ministério da Cultura e Turismo em 2023, e o Diploma de Honra – Pilar da Dança” da UNAC, em 2011.

É membro individual do Conselho Internacional da Dança da UNESCO e do CRIA (Centro em Rede de Investigação), e professora convidada em diversas universidades fora de Angola. AMC/JAM/PA/IZ





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